EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

sobre a descoberta

Quando a dor de ontem partido
der lugar ao futuro sem medo
Onde íris descobrem-se em risos
e desespero de bem de amor

ainda serei o que sinto
pois ainda sou o que vejo.

E aquilo que sou permanece
em tintas, carne e sombra
de saudade do beijo invisível
do amor não tocado na pele

Mas ainda sou o que quero
- ainda sou o desejo.

E a voz que atormenta o sono
me enche de som o silêncio
e o inferno do quarto vazio
suplica a chegada em breve

pois sou a perfeita espera
e ainda sou o anseio.

E a carne tremula em versos
e beijos e juras de amantes

pois sou a branda loucura
e ainda sou eu no espelho.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

física

Teu primeiro estado
- estático
inerte -
não move,
não sente,
repousa,
observa.
Aguarda algo que te impulsione
que te acelere
que te obrigue a mudar o curso.
Eis que outra força
- dinâmica, petulante, saliente,
puta verborrágica* e assoladora -
te envolve, te cerca,
e aplicando força ao teu corpo
te acelera
te dá sentido.
E tua inércia parte
para um terceiro estado,
onde há reação
com interações de contato,
força
tração
atrito
onde te descobres pulsante
vivo
sangue.


[* inspirado em leituras recentes]

chuva

Chove desesperadamente e eu gostaria de algumas más intenções perfeitamente imaginadas essa noite. Ou os deuses estão furiosos, ou estão fodendo feito loucos sobre nossas cabeças... Vai saber...

domingo, 26 de dezembro de 2010

vontade

A vontade dói
latejante
quente
corrosiva.
A vontade se impõe
pulsa
elétrica
desmedida
histérica.
A vontade fica.

sem título III

Devolve-me os risos
e me traz um pouco de cólera
enfeita meu chão de desejos
e te descobre em mim
te envolve em mim
te perde em mim
porque te imploro
ordeno
que te percas em mim
porque sou abismo
sou sonho
sou cio.
Me machuca.
diz que me ama em teu ganido
e me machuca
me lambe os ouvidos
o rosto
feito cão
no meio de minha tempestade
de minha desordem
de minha agonia
de tua fúria
anseio
júbilo
gravidade.
Te atraio
te envolvo
te mato.
Balbucia cretinices
no céu de minha boca
gira a língua
gira a vida
gira o mundo
- minha lembrança de amanhã.
Então, me fazes puta
e te escureço os olhos
- esses olhos de cor indefinida
que me fitam estáticos -
e te adoro com os lábios
te elevo
te celebro
te sublimo
e tu pulsas
fodes
com dedos emaranhados em meus fios
jorra teu rio
e segue teu curso
em meu sorriso.
Encontra-te.
Descobre-te inteiro.

poemeto à madrugada insone

na calada da noite
eu me rendo ao silêncio
da noite calada
silêncio de sons noturnos
onde se ouve tudo e nada
ouve-se a noite, apenas.

respirares
surtos
medos
gemidos
é tudo que se ouve
no silêncio da noite calada.

onde o medo de escuro
se transforma em medo de nada.

e o vento morno
invade minha madrugada
quando todas as luzes se apagam
as vozes se calam
deixando memórias invisíveis
no silêncio da noite calada.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Absurdo

Arranquei os trapos que me cobriam. Os medos. Arranquei de mim um bocado de pensamentos que me podavam. Olhei no espelho e me vi inteira, sorrindo histérica - porque sou histérica. E não havia nada de vulgar em dizer que tinha desejos diferentes, que desejava conhecer o que estava do outro lado do mundo, do outro lado do próprio desejo. Vi-me encurralada, intrigada, mais livre. Mas agora desejo cantigas diferentes, notas nunca antes tocadas no corpo. Desejo o absurdo. E o absurdo está pintado de poesia e outras intrigas, outras saídas infames, outros verbos - conjugações trôpegas e instigantes. O absurdo sussurra uma música conhecida em tom diferente, em cores já vistas mas nunca representadas dessa forma. O absurdo tem nome. Tem lugar - lonjura - e um céu de brigadeiro que preciso explorar em minhas incursões doidas. O absurdo me move, me excita, me atiça - despe-me em beijos e madrugadas insones. O absurdo me faz ser quem eu realmente sou. O absurdo é agora.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

ciranda

De madrugada
somos testemunhas de um desafio
de um desafio comparsa
de onde surge a ideia incerta
de poemices, sandices e desejos
e tu me provocas com gentilezas
de gostos e carinhos e afetos
sem ônus
sem medo
sem olhos
gratuitos
ingênuos
ridículos
de amores pueris
e paixões adolescentes
sem relógios de pulso
ou missas de domingos
tão pontuais
e tristes
porque o ponteiro segue
tictacteando
e eu quero parar
quero ser Branca de Neve esta noite
quero ser menina
ter olhos de ressaca
ressaca ridícula de amor infantil.
Te espero.
Vem me dar boa noite?
Canta pra mim?
E entre confissões de vida inteira
e de passado recente
fazemos pactos também pueris
você canta e eu leio
leio poemas de amor
de sexo
leio pra você dormir ou me amar
o que vier primeiro
porque eu só quero esquecer do relógio
do infernal ponteiro
e te beijar boa noite
e quem sabe
te amar outra vez amanhã.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

verbo, versos e outras matanças

Guardei aqui dentro
meia dúzia de versos sem-vergonha
versos pra cantar
dentro da tua língua
por trás das tuas pálpebras
por baixo da tua pele
nessa tua dança torta
de pés esquerdos
versos pra fazer bailar o tempo
pra fazer parar o tempo
esse cretino desalmado que é o tempo.
E meus versos entranham
em teus pontos inacabados
abertos
em teu peito exposto
e seguro teus dedos para que pares
para que não te feches
porque te quero assim
sangrando delícias
minúcias
segredos
quero-te cru
e cuspo álcool em tua pele
ardências
pra te confessar meus versos
carnificina do verbo
porque és bicho, homem
e para amar, matas
e quando matas, revives
e revives porque gozas
e renasces dentro de mim
em espuma morna
de almas liquefeitas
e fundidas entre pernas,
bocas e loucuras:
verbo, versos e outras matanças.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

o rio

Não, não desejo o mar
e sua revolta salinizada e bruta
Não, não desejo o mar
 - desejo o rio
a pedra
a pedra que o rio cavou
dentro do meu peito
a água doce e mansa
para sentir o fundo
a terra nos pés
entre os dedos
a mansidão morna e verde
o fim de tarde sereno
de livro lido deitado na rede
com o som tranquilo da água
calmaria profunda e presente
ausência de dor ou mágoa.
Desejo o rio
o rio de curso incerto
de curso mudado
de curso amável
que me banha a pele
e traz sorrisos de infância
rio de lava e amor
eterno
inclassificável.

something

domingo, 19 de dezembro de 2010

o princípio cósmico do amor... [repostando]

Platão descreveu o amor como algo mais profundo do que simplesmente físico. Em "O Banquete", fala sobre a naturalidade do amor sexual, mas exalta a amplitude da raiz do sentimento.
Ao contrário do que a maioria entende, o amor platônico não é o amor assexuado ou simplesmente contemplativo: é um princípio cósmico. A amor ultrapassa os limites do corpo e ama-se o universo no outro. É o amor genuíno, ilimitado, sem cercas, altruísta. É quando se aprende a amar a beleza da mente. É quando compreendemos Safo de Lesbos, sobre a diferença entre o bom e o belo. "O belo é belo aos olhos e basta. O bom torna-se subitamente belo."
O amor platônico é o amor incondicional. É o crescimento. A busca por algo maior e infinito. É a imortalidade das almas. 
Corpos são efêmeros; almas, infinitas.

sábado, 18 de dezembro de 2010

"Aqui jaz a amante do vento, aqui nasceu a amante da noite, para a alegre perdição do poeta."
[José Rodolfo Klimek Depetris Machado]

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

grita!

não desejo silêncios infames
quero barulho
porque sou carne
e tu me lambes os risos
as bocas
com tua língua de fogo
e tens entre os lábios da face
a pérola encarnada
e agridoce
da concha venusiana
descoberta entre segredos
e vales e medos.
e me dizes sandices
às minhas bocas vermelhas
que vibram a alma da rua
- minha alma torta -
meu corpo aberto
meus dedos tremidos
sentidos
porque sou carne
e te suplico: cala!
e tua língua vibra
dentro do meu sorriso
salivas
e me respondes: grita!

domingo, 12 de dezembro de 2010

"Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca."
Clarice Lispector

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

hiato

Soluço
- pausa -
silêncio.
metáforas mal arrumadas
e delírios adornados
de quereres profundos,
famintos,
cegos.
Desmesura
lonjura
loucura
- rimas sem nexo ou encaixe -
som partido
- encontro de opostos adjacentes -
de palavras,
desejos,
lapsos de tempo e memória.
Tácito diz que há linguagem no hiato
- eu digo que há fome,
e na fome, carência - conclui -
e na carência, fogo,
e no fogo, fúria
- entidade multipresente no vício.
Com lábios pintados de carmim
digo "alcoólica"
e tu me devolves "diaba"
antes de juntarmos
as sílabas e as línguas
- pequena morte desejada.
E a boca borrada de carmim
sussurra entre encontros vocálicos gemidos:
"há fome no hiato".

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

nudez

Ao meio-dia
entre todas as coisas estranhas
de dia comum e tardio
eu me mostro
nua, partida
sem medo.
Mostro-me ao meio-dia
no meio da rua
no meio do dia
no meio do tempo
saudade - palavra estranha.
Arranco a roupa
o sorriso
o gosto
a voz
a paz.
Resta a carne
aos lobos.
Matéria.
Cadência.
Nudez.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

[roubei do blog do Paulinho] A vida se reconstrói

Vou postar a parte mais interessante do texto que roubei do blog do Paulinho...



"Pode demorar. Os que já passaram por isso sabem que um dia todo o sofrimento passa, a tempestade se desfaz, o bom tempo volta e o sol torna a brilhar, a aquecer a alma e a iluminar os caminhos. Quem ainda não chegou a esse momento pode acreditar: isso passa; pode demorar, mas passa. É preciso manter viva a chama da esperança e acreditar na capacidade de ressurreição do coração arrasado. Sempre haverá no futuro a possibilidade de um novo amor e é necessário estar preparado para receber essa dádiva preciosa. E um dia, em um futuro por vezes nem tão distante assim, a nova paixão ilumina com seu brilho a alma, como o sol que ressurge e nos aquece após um longo período de mau tempo. Ou como a primavera que rebrota depois de um longo e escuro inverno.



A vida se impõe. Sempre."

Encontros, desencontros, reencontros

Artur da Távola disse que todo encontro carrega um desencontro. Sim. Faz sentido. Concordei. 
Lendo o resto das crônicas daquele livro, percebi que meu querido cronista estava sendo contraditório, pois, em outro momento, quando fala sobre afinidade, afirma haver neste sentimento conectivo algo atemporal, uma ligação que escorre feito água pelos dedos de Cronos.


"A afinidade não é o mais brilhante mas é o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. O mais independente, também.
Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vidaÉ uma vitória do adivinhado sobre o real.[...]


Então cheguei à conclusão do seguinte: da mesma forma que cada encontro já vem carregado de um pouco da tristeza do desencontro, cada desencontro traz a esperança da alegria do  reencontro - o inextinguível ciclo das coisas.

sábado, 27 de novembro de 2010

Anaïs - parte V: o despertar

Amanhecia. Tentou se mover mas o peso sobre a coxa a imobilizava: ele dormia entre as pernas de Anaïs, com a cabeça apoiada em sua coxa esquerda. A simplicidade daquele momento causava-lhe comoção. Estendeu a mão e alcançou o maço de cigarros no criado-mudo.
Tragava lenta e profundamente, como se fosse o último cigarro de sua vida. Olhava através da espessa cortina de fumaça que se formava à sua frente, com lampejos de memória das horas que antecederam o dia."Afinal, quem diabos é você?", sussurrou entre um trago e outro.
A cabeça do homem moveu-se lentamente em direção ao meio das coxas brancas, beijando-lhe o sexo.
- Bom dia, Anaïs. Adoro beijar sua boca pela manhã. Gosto de sua saliva - disse, rodopiando lentamente a língua em torno do clitóris.
- Você ainda não me beijou a boca esta manhã...
- Acabo de beijá-la...
- Eu não sei ainda o seu nome...
- Sabe, sabe sim. Sussurrei em seu ouvido várias vezes esta noite...
Subiu a língua pelo umbigo, barriga, vale dos seios. Anaïs fechou os olhos.
- Não lembro... Quero saber seu nome...
- Então me conte seus segredos - balbuciou com a boca grudada à pele.
Sentia a tensão sexual pulsar de encontro ao seu corpo, fazendo com que se desesperasse de medo, angústia, desejo.
- Do que você tem medo, Anaïs? - falava lentamente, como se temesse afugentá-la, enquanto tomava a mulher aos poucos.
Sentia-se cada vez mais intrigada. Estava perdendo o controle, sumindo de si, escapando do mundo real. Ele não parecia real. Mas sentia a pele, o cheiro, o desejo crepitante. Ardia. Doía. Queimava como o inferno.
- Por que você não diz logo a porra do seu nome?
O homem saiu de cima de Anaïs, sentando-se à beira da cama.
- Venha aqui. Não precisa ter medo de mim.
E quanto mais ele se esquivava, mais Anaïs se desesperava. "Que tipo de pessoa não diz a porra do nome?"
Levantou-se e fez menção de apanhar o vestido, mas ele a tomou pelo pulso e repetiu:
- Venha cá.
Beijou-lhe a barriga.
- Você me ama, Anaïs?
- Não. Eu te odeio.
- Então prove.
Deitou-se, deslumbrando Anaïs com seu desejo. Sentou-se sobre ele, sem resistência.
- Filho da puta... Vá embora...
- Você quer que eu vá?
Anaïs respondia com os quadris, subindo e descendo devagar, mordendo o lábio inferior.
- Quero... - balbuciava rouca, sentindo o ódio se acumular no ventre, junto do amor.
- Então me conte... tudo... agora... bem devagar... - disse ele, segurando Anaïs pelas ancas e controlando seus movimentos.
- O diabo ... pode citar as escrituras... quando isso lhe convém...
- Shakespeare... boa menina... diga mais...
- Eu... eu fiz coisas ruins...
- Como você fode gostoso, Anaïs...
- Eu... não queria... ah... desgraçado... suma da minha vida...
- Eu não estou fazendo nada, querida...
- Eu gostei... de ver... o medo...
- É gostoso, não é? Isso... fale, Anaïs... coloque a raiva pra fora...
Anaïs sentia que o mundo acabaria dentro dela. Sentia uma inquietação sem explicação, sem advertência, sem rumo. Ódio e amor estavam ali, diante dos olhos, entre as pernas. E enquanto gritava suas agruras, o outro jorrava satisfação no centro de seu mundo, no meio de sua alma, de sua lama, de seu ventre.
Cansada, deitou-se sobre o homem. 
- Eu sou o seu demônio, meu anjo. Eu não existo. 
Afagou os cabelos de Anaïs enquanto ela adormecia em seu peito, ouvindo as últimas palavras.

[continua...]

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

outros diálogos

- Gostar ou amar?
- Não sei.
- Você é intrigante.
- Por quê?
- Sagitário. Fogo.
- Interessante...
- Obrigada. Você também...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

muda

Ela se olhou no espelho às 4:00 da manhã e viu uma mulher diferente: cansada, mais velha, bonita. Olhos de ressaca empapuçados de maresia. Unhas pintadas de lilás. E lembrava apenas da sensação de alma, de rasgos de loucura vulcânica que a assolavam entre ranger de dentes.
Sentiu-se nova, diferente. Estava trocando de pele.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

U2

Essa música fala sobre morte... ou sobre uma outra perspectiva da vida... A vontade de permanecer...
Tudo é uma questão de perspectiva.

Green line, Seven Eleven
You stop in
For a pack of cigarettes
You don't smoke
Don't even want to
Hey! Now check you change
Dressed up like a car crash
The wheels are turning
But you're upside down
You say when he hits you
You don't mind
Because when he hurts you
You feel alive
Is that what it is?

Red light, gray morning
You stumble
Out of a hole in the ground
A vampire or a victim
It depends on who's around
You used to stay in
To watch the adverts
You could lip synch
To the talk shows
And if you look
You look through me
And when you talk
Is not to me
And when I touch you
You don't feel a thing

If I could stay
Then the night would give you up
Stay
Then the day would keep its trust
Stay
and the night would be enough

Faraway, so close
Up with the static and the radio
With satellite television
You can go anywhere
Miami, New Orleans
London, Belfast and Berlin
And if you listen
I can't call
And if you jump
You just might fall
And if you shout
I'll only hear you

If I could stay
Then the night would give you up
Stay
Then the day would keep its trust
If I could stay
With the demons you drowned
Stay
With the spirits I found
Stay
And the night would be enough

Three o'clock in the morning
It's quiet and there's no one around
Just the bang and the clatter
As an angel runs to ground
Just the bang and the clatter
As an angel hits to ground

Um pouco de Pessoa

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas
Que já têm a forma do nosso corpo
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia 
E se não ousarmos fazê-la
Teremos ficado para sempre
À margem de nós mesmos"

Fernando Pessoa

sábado, 20 de novembro de 2010

Empty

O mundo parou.
Fez-se silêncio.
Nostalgia.
Memórias.
Os olhos de fundo de rio tornaram-se lava.
Queimaram de ódio, de mágoa, tristeza.
Queimaram de amor e partiram.
Partiram.

Drummond me perturba:
A festa acabou
a luz se apagou
o povo sumiu
a noite esfriou...

A noite esfriou.

A rádio toca a música da partida.
Música de amor, de amor triste.
Porque amor é triste.
Desespero.
Inundação.
Inundação de lágrimas, gozo, vinho.
Mais de lágrimas que de resto.

O mundo parou.
A sala ficou vazia.
Mas a vida continua do lado de fora.
Vou abrir a janela
e deixar o vento entrar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Essas mulheres

Essas mulheres me invadem. Tomam um espaço que não sei se tenho. Porque eu preciso de um espaço maior que meu corpo - um espaço mutante, transformista, caleidoscópico. Porque eu mudo a todo instante: de nome, de pele, de gosto, de sina. Eu mudo de casa. De reta. De direção. De esquina. Eu mudo de rota. De vento.  Mudo de lua. Horizonte. Mudo de roupa. Porque eu quero estar boneca. Quero estar maldita. Quero estar serena. Cretina. Ordinária. Passiva. Cadela. Quero um gole de cólera, de medo, de serenidade alcóolica. Porque é nessa vertigem lenta que enxergo e desfaço meu mundo, meu espaço de espaços abertos, de vírgulas - vírgulas mais que tudo! Canções de ninar. Eu descoberta. Seminua. Eu e essas mulheres.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Anaïs - parte IV: o apartamento

Abriu a porta do apartamento com o molho de chaves que Anaïs não conseguia manipular com as mãos trêmulas. Sorriu ao se deparar com a desorganização do apartamento, estranhando as notas amarelas espalhadas pelo chão e grudadas nas paredes. Os cinzeiros lotados denunciavam que o apartamento não era limpo há algum tempo.
- Onde fica a cozinha?
Anaïs apenas indicou a direção com um gesto de mãos, sem tirar os olhos dos pés. "Por que ele não me quer? O que eu fiz de errado? Droga, preciso fazer as unhas..."
Ficou pensando se devia mandá-lo embora de uma vez por todas ou se deveria levar adiante a ideia estúpida de que só dormiria se ele a comesse. Sabia que no fundo não se tratava disso, não se tratava de uma carência absurda - pelo menos era o que repetia em sua cabeça. Tratava-se apenas de uma questão de orgulho ferido, de desafio, de provar a ele - e inconscientemente a si mesma - que era soberana naquele mundinho de merda, naquele espaço infinitamente reservado e vazio.
- Vai ver você não é psiquiatra forense porra nenhuma...
Ele apenas riu, voltando da cozinha com duas taças do vinho que havia trazido.
- Sim, vai ver que sou um psicopata com sérias tendências homicidas... Enfim...achei as taças no armário da cozinha. Você vai beber? Se preferir, posso beber um pouco das duas taças pra você ter certeza de que não envenenei sua bebida... - completou, tentando conter o riso.
- Você é um grande filho da puta... O que eu tenho de errado?
- Um monte de coisas.
Aquela era a resposta que Anaïs não esperava ouvir.
- Por que você faz isso comigo?
- Não fiz nada. Você perguntou, eu respondi. Ou realmente acha que eu diria que você é perfeita?
- Sim.
- Errado.
- Você é um babaca.
- Eu sei.
Anaïs virou a taça de vinho de uma só vez. O homem dirigiu-se novamente à cozinha e voltou com a garrafa. Encheu o copo de Anaïs.
- Eu não sei o seu nome.
- Você não me perguntou, Anaïs.
- Eu não te disse meu nome também. Que porra é essa? Você é algum maluco? Como você sabe meu nome?
- Seu chaveiro tem o seu nome. Ou você divide o apartamento com alguém?
- Eu te odeio!
- O mundo existe, Anaïs. Apesar de você, o mundo existe...
Anaïs estava ferida. A taça de vinho foi lançada à parede e seus punhos fechados batiam contra o peito daquele estranho que insistia em insultá-la, como se alguém tivesse acendido as luzes do palco - do seu palco particular - no meio do espetáculo.
Ele agora deixava de ser afável. Segurava os punhos de Anaïs com força, empurrando-a contra a parede.
- Não, não quero mais você. Me larga. Me deixa em paz. Eu preciso fumar, me larga!
E quanto mais ela resistia, mais força ele usava. Agarrou Anaïs pelos quadris e a suspendeu de encontro à mesa da sala, ignorando as recusas entrecortadas por soluços.
- Me larga, seu filho da puta... Eu... vou gritar... - a voz tremia.
Anaïs imaginava que aquilo fosse alguma forma de tortura, que ele fosse parar novamente quando ela começasse a chorar. Mas ao invés disso, abriu suas pernas e se colocou de joelhos entre elas, ainda segurando os pulsos de Anaïs com apenas uma das mãos, lambendo e mordendo a parte de dentro das coxas, enquanto as súplicas eram substituídas por arfares e espasmos de corpo inteiro.
-  Por quê? Por que você faz isso comigo? Eu ... te odeio...
E a boca afastou-se por um instante suficientemente breve para balbuciar:
- Porque você é louca, Anaïs...

[continua...]

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Nem sempre minhas inspirações são bonitas.
Nem sempre eu quero uma casa no campo ou uma palavra. Às vezes basta sentir a boca arder e deixar que o resto se foda por um ou dois dias. Por uma pequena eternidade que pode ter seu curso alterado a qualquer segundo, como bala perdida.
Tudo muda, sem exceção.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

falares

Palavras à deriva
mar sob os pés
e nuvens por dentro das pálpebras.
Falares fluidos, desconexos,
polissemias bailantes
cheias de si
- verdades e temores -
certezas do infinito que não há,
do futuro que não chega,
do passado que não parte.
O grito que vibra
o choro que rompe
o gemido que corta
a palavra que fere.
Falares mudos,
pensares úmidos
e pulsantes.
Olhares perdidos
entre súplicas mal entendidas
e desejos em carne viva.
Verdade. Mentira.
Qualquer punhado de vida.

sábado, 18 de setembro de 2010

Arderes

Arde.
Arde sem razão.
Arde porque arde.
Arde porque deixo arder.
Arde porque preciso que arda.
Arde porque sou louca.
Porque sou bicho.
Porque sou eu.
Mulher.
Ardo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Anaïs - parte III - delicatessen

O trânsito já não estava tão caótico. O belga sujo já não estava na portaria. Milagrosamente - ou por alguma razão que ignorava completamente - o elevador havia voltado a funcionar. A cabeça rodava um pouco e a boca estava seca. As mãos suavam. Não estava sofrendo crise de abstinência por causa da nicotina. O pensamento beirava o ridículo. O elevador passava lentamente pelo terceiro andar e imaginou que descer pelas escadas havia sido mais rápido. Mas não tinha pressa. Estava voltando para o refúgio do apartamento bagunçado e fedendo a cigarro.
Sexto andar. Pela primeira vez em sete dias desejava não estar sozinha. Enfiou a chave na fechadura e percebeu que havia deixado o som ligado. Al Green gemia docilidades em Simply Beautiful enquanto Anaïs deixava o cesto de roupas limpas sobre a mesa da sala. O vinho acabara. O blanquet também. Os croissants estavam velhos. O macarrão estava frio e iria para o lixo. Sentia fome. Precisava de mais vinho. Precisava sair novamente. Precisava saber aquele nome, aquele endereço, descobrir de onde vinha aquele cheiro. Mas aquela era uma fome desconhecida, um tremor estranho, uma sede sem razão. Uma violência ao corpo, uma inquietude de espírito. Um desejo mal desenhado pelos restos incólumes de algo que a perturbava e não partia. Al Green a fazia sentir leve. Queria dançar. Sentia-se irremediavelmente só.
A pia negra do banheiro estilo art-nouveau estava repleta de quinquilharias inúteis. Acendeu a luz e se olhou no espelho. Parecia cansada. Não tinha sono. Estava mesmo com fome. Precisava de banho.
Deixou as sandálias no canto do banheiro e tirou a roupa devagar, com o corpo tenso. A água quente sempre abria do lado esquerdo - devia ser alguma estúpida regra universal. Estranhamente reparava em torneiras e chuveiros de todos os banheiros e lavabos que visitava.
As gotas escorriam em câmera lenta pelo corpo, fazendo uma longa viagem até o ralo. Levavam consigo um tanto da angústia de Anaïs, como se a água pudesse levar tudo embora, exatamente como fazia com o suor e a sujeira. Mas as angústias estavam mais fundo e era preciso fazer força para que elas brotassem dos poros e se mandassem embaixo do chuveiro. "Fome miserável", resmungou enquanto deslizava o sabão pelos seios, umbigo, púbis. "Se ele me comesse, aposto que conseguiria dormir essa noite."
Deixou a água levar o resto de sabão e os pensamentos. Enrolou-se na toalha amarela e apanhou um vestido pendurado na cadeira - porque desde menina Anaïs odiava guardar suas roupas. Olhando-se novamente no espelho, achou ótimo manter os cabelos sempre curtos - isso facilitava a sua vida. Calçou outras sandálias e saiu ao encontro da delicatessen, e, já que estava experimentando novas sensações, iria também ao encontro da mortadela.
Dentro do elevador lembrou-se que esquecera novamente o cigarro. "Cabecinha de merda!", exclamou. Não subiria novamente. Resistiria. Irritada, talvez, mas firme.
A delicatessen ficava a dois quarteirões do prédio antigo e cinza de Anaïs. Não era de todo ruim andar para aqueles lados. Sempre havia velhas senhoras extremamente sorridentes a segurar seus cãezinhos, uma das poucas cenas que faziam Anaïs esboçar sorrisos. Ficaria velha e teria apenas um cão como companhia. Lembrou das notas espalhadas pelo chão do apartamento.
Atravessou o primeiro cruzamento. Ruído silencioso de rua às dez da noite. Pouco movimento de carros, poucas pessoas andando, distância do caos. O ar tinha cheiro de quase verão, onde as noites ainda pedem alguma coberta sobre o corpo. Veio o segundo cruzamento. "E não sei a cor dos olhos dele..."
A delicatessen estava vazia - tão vazia quanto a lavanderia - e o atendente não pareceu feliz ao perceber que ainda levaria algum tempo para poder encerrar o expediente. "Foda-se. Vai ter que esperar. Eu não estou com pressa."
Anaïs chegou ao balcão de conservas e embutidos e pediu blanquet, tomates secos e alcaparras.
- Qual é a melhor mortadela que você tem?
- A defumada.
- Ok. Pode ser isso mesmo.
- Quer provar?
Anaïs hesitou por alguns instantes antes de aceitar a prova. Não sabia a origem da repulsa em relação à mortadela, era simplesmente algo que não conseguia controlar.
- Obrigada - agradeceu, levando o pedaço do embutido à boca.
Mastigou lentamente, sentindo primeiro a textura e depois o sabor. Era forte. Deixaria marcas em suas papilas gustativas. Adorava o exagero de seus pensamentos. "Se ele pudesse me ouvir, riria da minha cara", imaginou.
Precisava de vinho, de mais vinho e de azeitonas chilenas. Uns croissants, umas baguetes e faria um banquete para desfrutar sozinha - poderia convidar Al Green para sentar-se à mesa. Escolheu três vinhos diferentes e juntou ao resto da compra.
O rapaz a observava com uma certa estranheza, pensando que talvez fosse louca. "Louca, completamente louca...", riu-se em silêncio.
As compras foram dispostas em duas sacolas e começava a se arrepender de ter que carregar tudo aquilo por duas quadras. Com alguma sorte, o elevador ainda estaria funcionando.
Entre sacolas, carteira e pensamentos inúteis, tentava sair da delicatessen quando um corpo grande e distraído a atropelou porta adentro, fazendo com que a sacola dos vinhos fosse ao chão.
- Porra! Olha pra frente!
Conseguiu, enfim, decifrar a cor dos olhos do intruso - porque, pela segunda vez no mesmo dia, ele estava invadindo o território de Anaïs. E sentiu raiva dele por ter estragado seu encontro com Al Green - porque ela estava decidida a sentar novamente entre as almofadas encardidas e ouvir os vinis até se embebedar ou adormecer - o que acontecesse primeiro.
- Vamos ver se você tem bom gosto... - disse, abaixando-se para conferir o que havia dentro da sacola que jazia ao lado da porta.
Talvez houvesse alguma razão para aquilo tudo, talvez fosse o destino, ou talvez ele fosse um maníaco que a estivesse seguindo. Podiam ir pra cama. Podiam ser amigos. Poderia viver o resto da vida com ele. Ou odiá-lo com todas as suas forças, como naqueles folhetins baratos que pendiam nas bancas de jornais.
Começou a imaginar sandices enquanto via o estranho se dirigindo ao balcão e pedindo para o rapaz repor a compra de Anaïs. Não ouvia o que ele dizia, como se aquilo fosse a cena de um filme mudo, mas se passando em câmera lenta. Todos os sons foram desligados. O mundo fora da delicatessen não existia. E ao mesmo tempo sabia que aquilo tudo era de uma estupidez atroz, ridiculamente fora da sua realidade.
- Vem, eu te levo até em casa.
Anaïs não respondeu. Consentiu caminhando para fora da loja, como se estivesse dopada.
Caminharam em silêncio, o mesmo silêncio constrangedor que os envolvera na lavanderia. Atravessaram as ruas sem olhar para os carros - como se o mundo realmente os tivesse abandonado. "Por que você está fazendo isso comigo? Porra, me deixa em paz...", pensava ao longo do caminho. E quando menos esperava, estavam à frente de seu prédio.
- Não quero que você suba. Deixe que eu levo.
- Tem certeza?
Silêncio.
- Não.
Abriu a portaria devagar. Precisava de tempo. Caminharam lentamente até o elevador, que por ironia do destino, havia parado novamente.
- Puta que pariu... Desculpe... São seis andares.
- Tudo bem.
Anaïs subia os degraus como se estivesse prestes a explodir, louca de raiva do síndico, do porteiro, da empresa de manutenção, do atendente da delicatessen. Nada fazia sentido. E o cheiro da camisa branca e limpa dele impregnava o corredor. E estava se cansando, porque as subidas são sempre mais difíceis. E não tinha cigarro. E estava com fome.
- Me come - disse Anaïs de súbito nas escadas entre o 3º e o 4º andar.
- Não.
A negativa arrebatou Anaïs como um raio. Sentiu-se ridícula outra vez. Humilhada. Pequena. Menina. Desatou a chorar. Soluçava como se a morte tivesse anunciado um fim próximo, como se não houvesse mais salvação para sua pobre alma.
Mais uma vez o estranho a acolheu no peito seguro, enquanto despejava todas as suas fúrias ao mundo de uma única vez.
- Eu preciso muito que você me machuque...
As sacolas haviam sido postas no chão e os dois beijavam e lambiam e acariciavam o outro como bichos, entre arfares, grunhidos e pequenos guinchos que entrecortavam as respirações e o som abafado de alguma tevê ligada no andar de cima. As mãos de unhas bem cortadas sentiam Anaïs entre as coxas. Ela mordia a outra boca prestes a arrancar nacos de carne dos lábios do homem, fazendo com que reagisse mais fundo com os dedos dentro dela.
- Me machuca... Eu te odeio... Me fode...
Ele abriu lentamente o zíper da calça para que a pequena mão de Anaïs pudesse sentir como estava duro, como queria machucá-la, como desejava fazê-la gritar. E ela soluçava cada vez mais, chorando, apertando a mão dele cada vez mais entre as pernas, como se fosse esmagar-lhe os dedos. Era a primeira vez que fodia um estranho.
- Diz que me ama... eu odeio você... odeio... me machuca... quero que você faça doer... preciso sentir alguma coisa, pelo amor de Deus...
Ao invés de penetrá-la, apenas a abraçou forte. Retirou lentamente a mão do meio das coxas de Anaïs, beijando-lhe suavemente os olhos encharcados e vermelhos.
- Vem. Vamos subir.
E, pela segunda vez no mesmo dia, amaram-se antes de tudo.

(continua...)


domingo, 29 de agosto de 2010

Eu sou!


"Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher
Minha mãe e minha filha,
Minha irmã, minha menina
Mas sou minha, só minha e não de quem quiser..."

[1º de julho - Renato Russo]

domingo, 22 de agosto de 2010

Anaïs - parte II - a lavanderia

"Fico tão puta quando esse elevador quebra", gania enquanto descia as escadas do prédio antigo. Segurava de mal jeito o cesto de roupas, enfiando impacientemente as mangas de um casaco que insistiam em ficar penduradas para fora dele. No meio do caminho lembrou que não levava nenhum livro para ler enquanto a roupa lavava. Será que havia revistas na lavanderia? No mínimo seriam aquelas tediosas revistas de conteúdo intelectual abaixo de zero.
O mármore das escadas estava tão encardido quanto as almofadas da sua sala e o corredor fedia a cloro. O andar térreo parecia estar cada vez mais longe e começava a se arrepender de ter calçado as sandálias e resolvido sair. Mas estava muito ruim continuar ali, olhando as garrafas vazias e palavras sem sentido, tentando buscar um resto de alma que fosse em qualquer merda de pensamento inútil.
O porteiro sorriu, levantando-se da modesta cadeirinha de madeira de seu posto e abrindo a porta para que Anaïs saísse. Ele cheirava à bebida e suava como um bicho. Era um belga de quase 2m de altura e rude como um estivador. Dizia sujeiras e sacanagens em flamengo toda vez que ela passava, sem saber que ela havia aprendido um pouco do idioma quando passou uma temporada em Brugge. "Porco", pensou Anaïs. Adoraria vê-lo afogado no próprio vômito - o canalha certamente não voltaria do inferno para espancar a mulher e o menininho de 8 anos.
Ficou um tempo parada à porta do prédio, olhando os carros passarem. Era tudo tão louco e rápido, louco e lento. Era estranho, simplesmente estranho. Era a vida que passava de um jeito que não entendia muito bem, com o tempo batendo à porta a cada arfar, a cada piscar de olhos, a cada gesto involuntário. E era essa estranheza de pairar entre a análise e descrição de tudo ao redor e a tentativa alucinada de mergulhar mais fundo para dentro de si - goela abaixo - que a deixava totalmente aturdida. Esses grandes questionamentos a consumiam. Mas ela não queria respostas. "Fodam-se as respostas. Quem disse que tudo precisa necessariamente fazer sentido?"
Precisava de um cigarro. Precisava desesperadamente de um cigarro. O trânsito estava caótico e aquelas luzes causavam-lhe dor de cabeça. Queria voltar. Ainda dava tempo de voltar à segurança do apartamento e estar de novo na companhia dos fantasmas mudos. Mas havia acabado de descer 6 andares pelas escadas. Não voltaria com as roupas sujas. Iria mesmo à lavanderia e, quem sabe, à delicatessen comprar mortadela. Será que conseguiria comprar mortadela no mesmo lugar em que comprava seu blanquet? "Porra, eu esqueci o cigarro!"
Oito e cinco. Quinze passos - eram necessários quinze passos para alcançar a porta da lavanderia. O cheiro de roupa limpa e amaciante inundou os pulmões mal acostumados de Anaïs. "Vazio. Ótimo." Estava feliz por não precisar conversar com ninguém. Mas precisava comprar seu cigarro. Deixaria as roupas na máquina e atravessaria a rua para comprar seu cigarro.
As paredes branquíssimas e excessivamente cheias de instruções a irritavam enormemente. "Alguém lê essa merda?" Parecia estúpido não lavar as roupas em casa. Aquilo parecia desculpa de gente solitária para ter um pouco de companhia por 40, 45 minutos, talvez... Era patético. Sentia-se patética. Lembrou do macarrão que já estaria gelado quando voltasse. Iria pro lixo. Estava sem camarão. E veio a triste constatação de que não havia revistas na lavanderia. Nem jornais. E a luz ali era tão forte, tão diferente da porcaria de iluminação da sala do seu apartamento... Seria bom ler na claridade.
O mensageiro dos ventos avisou que outro cliente entrava. "Merda", pensou Anaïs, apertando os olhos. Definitivamente não desejava estabelecer qualquer forma de diálogo ou contato aquela noite. Manteve-se de costas para a porta, já longe do balcão da atendente.
- O senhor quer serviço de valete? - perguntou a moça ao outro cliente.
- Não, obrigada. Eu gosto de lavar, você sabe.
"Que idiota", imaginou. "Se gostasse mesmo de lavar, faria isso em casa." Anaïs havia escolhido o último corredor para poder se enrolar o quanto quisesse - e precisasse - sem que alguém a observasse. Ouviu passos naquela direção. Irritou-se. "Será que não se pode lavar uma roupa em paz nesse estabelecimento?" Fingindo não perceber a outra presença, continuou lendo as letras miúdas das instruções e dos trezentos e quarenta e sete botões e opções de lavagem. 
- É a sua primeira vez, não é?
O homem a olhava com um sorriso simpático e irritantemente solícito. Segurava um cesto igual ao seu. 
- Esquece. Você não vai me comer.
Uma risada alta e grave. Um gesto com a cabeça e um sacudir de ombros. 
- Ok. Prometo que não vou cometer nenhum ato antropofágico no meio da lavanderia, mas se você precisar de ajuda com a máquina...
Sentiu-se estúpida. Queria sumir dali.
- Tudo bem. Você fuma?
- Não. E é proibido fumar aqui dentro.
Quis morrer. Ficaria 40 minutos olhando a roupa girar dentro da máquina sem poder ler ou fumar. Esperava com todas as suas forças que o homem fosse lavar sua roupa do outro lado, mas ele parecia pretender ficar por ali. 
Alguns dizem que se pode saber muito sobre uma pessoa pelo seu lixo. Anaïs concordava com isso e, analisando o vizinho de lavanderia, percebeu que talvez as roupas do cesto também dissessem algo a seu respeito. Na falta de uma boa leitura, observaria a roupa do sujeito e tentaria adivinhar sua ocupação.
Camisas sociais. Meias finas. Onde estariam as calças? Certamente não usava jeans para trabalhar, apesar de estar vestindo um naquele momento. Devia usar calças sociais. Executivo? Médico?
O homem terminou de alimentar a máquina e se sentou, pegando um livro do fundo do cesto vazio. Surveiller et Punir, de Foucault. Filósofo? Sociólogo? 
- Psiquiatra forense - disse o homem, sem tirar os olhos do livro.
Anaïs percebeu que não tinha terminado de colocar as roupas dentro da máquina, e que havia se perdido observando as roupas do vizinho. Sentiu-se mais uma vez ridícula. E o ar ali parecia estar parado. Sentiu fome. Ele era atraente. 
Imitando o homem, terminou de colocar as roupas na máquina e se sentou. Permaneceu em silêncio. O barulho de água fazia sentir sede. Ele tinha mãos bonitas e grandes, unhas curtas. Gostava de mãos. 
- Por que achou que queria saber sua ocupação?
- Psiquiatra forense, eu disse. Nenhum detalhe me escapa.
- Psiquiatra forense ou médium?
- Um pouco dos dois, talvez. 
Sorriu. Anaïs se mexeu na cadeira, na tentativa de fazê-lo levantar os olhos do livro. Queria ver a cor dos olhos dele. Mas ele não se moveu. Talvez a estivesse ignorando pelo seu péssimo comportamento de antes. Talvez não estivesse mesmo interessado em conversar. 
Aquela situação era mais constrangedora do que tudo. Estava nervosa. Quis roer as unhas. Arrancar as cutículas. Sentir o cheiro do cigarro no apartamento bagunçado. Tirar a roupa. Transar ali, no chão da lavanderia. Dizer que amava o desconhecido para nunca mais vê-lo. Queria mesmo trocar de pele. Ter um filho. Viajar para Londres. Virar puta.
O relógio havia parado. A máquina também. Era hora de secar. O tempo havia voado. O silêncio entrecortado pelo balançar ritmado das lavadoras era triste. Anaïs quis chorar. Sentiu o nariz arder e os olhos ficarem embaçados de maresia. Um pouco de alma correu silenciosamente pelo canto do rosto. Um lenço branco oferecido pela mão bem feita do homem impediu o curso daquele pequeno pedaço liquefeito de alma de Anaïs.
Permaneceram em silêncio. Não conseguia ver direito a cor dos olhos dele por trás da cortina salinizada que cobria os seus. Havia um tanto de compreensão naquele instante mudo e repleto de sentidos. O homem passou o braço pelos ombros de Anaïs. Em seu colo, o livro permaneceu aberto na primeira parte: Suplício.
A roupa secou. Recolheram-nas e as puseram novamente em seus cestos. Olharam-se, confusos. Não disseram seus nomes. Não perguntaram exatamente nada. Foram cúmplices. Amaram-se platônica e complexamente por aproximadamente trinta minutos, enquanto suas roupas lavavam e secavam. 
Foram embora. Não disseram adeus. Não sabiam se voltariam a se ver novamente. 

(Continua...)


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Anaïs - parte I

"Estão todos mortos", pensou Anaïs. Todos aqueles fantasmas cheios de si e cheirando a naftalina estavam amontoados em um canto sujo do quarto. Acendeu um cigarro e tragou longamente, como se algum mistério da existência pudesse ser desvendado em meio à fumaça em seus pulmões. Olhou ao redor e as garrafas de vinho dos últimos sete dias ainda jaziam pelo chão, espalhadas entre roupas, livros e flores mortas. As anotações picotadas em notas amarelas coladas nas paredes denunciavam a pouca coerência de seus pensamentos.
Caminhou pelo cubículo, chutando as almofadas encardidas e os quatro cinzeiros repletos de pontas de cigarros e cinzas de uns poucos pensares, lendo cada uma das notas das paredes. Com o monte de notinhas imbecis entre os dedos, sentou-se.
"Que merda", resmungou. Um ruga entre os olhos e fumaça lançada longe. Aquela luz nunca funcionava direito e ficava imaginando que deveria ter comprado o abajour lilás da feira de artesanato. Misturou as anotações e tentou montar um quebra-cabeças que não tinha encaixe. Estava puta com a demora da lavanderia, com a multa de trânsito, com a mortadela estragada na geladeira. Mas ela não comia mortadela, não tinha carro, lavava sua própria roupa. Estava enfurecida sem razão, ou talvez por todas as razões que não cabiam em sua vida. Estava faltando alguma coisa e sabia que devia estar anotado entre aqueles malditos papéis amarelos e minúsculos.
Estava sozinha e trancada no apartamento há sete longos dias. Não viu a cara da rua. Não ligou a tv. Não atendeu o telefone. Precisava sentir-se miseravelmente solitária para embarcar numa incursão ao seu próprio calabouço e tentar entender o que havia de errado. Ou talvez não. Talvez precisasse entender que não havia nada de errado, que tudo era uma tremenda babaquice existencial balzaquiana - o que era mais provável. Lembrou novamente dos fantasmas e se virou para o canto onde os havia deixado, aliviando-se ao perceber que ainda estavam ali. "Preciso limpar essa sujeira", resmungou. No fundo, fazia bem saber que estavam ali perto, pois nunca imaginava quando poderia voltar a precisar de algum deles.
Levantou-se e deu de cara com um número anotado na primeira página do caderninho preto. Sorriu. Apagou o cigarro. Imaginou que talvez a sensação fosse de mais um de seus repentes hormonais. Talvez só precisasse ser barbaramente fodida. Quanto tempo fazia? Um, dois meses? Não lembrava ao certo. Sexo era tão absurdamente fácil que Anaïs acabou cansando das trepadas casuais. Era sempre a mesma coisa: bastava fazer aquele jogo casado de olhos e boca que acabaria na cama de algum motel. E isso a irritava profundamente depois do gozo, a ponto de, muitas vezes, não deixar que o amante - quem quer que fosse - a beijasse após o sexo. E sempre dizia que trepava, fodia, transava, mas nunca, nunca dizia que fazia amor.
O interfone toca. Anaïs levanta aos tropeços e xinga por ter que se vestir para atender a porta. Comida chinesa de novo. Sete e meia da noite. Paga a encomenda apressada e deixa o rapaz ficar com o troco. Senta novamente no chão e olha as notinhas. A porcaria da comida está morna, o serviço do restaurante está cada vez mais decadente. "Porra, cadê o camarão?"
Sete e quarenta e cinco. O box de macarrão continua praticamente intacto. Na verdade, não estava realmente com fome. Largou a comida e calçou as sandálias de couro, andando pelo apartamento e juntando as roupas sujas que encontrava em um grande cesto. 
Resolveu mudar a maldita rotina. Precisava ir à lavanderia.

(Continua...)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Acaso

Ao acaso
eflúvios de amor
grudados à pele,
ao nome, ao termo -
término de espaço vazio.
Ao acaso
um tanto de dor
fingindo que fere
mansidão e desterro,
tempestade varando o estio.
Ao acaso
me viro do avesso
paro
olho
demoro
sorrio.

sábado, 31 de julho de 2010

invasões bárbaras

É noite de lua - rosno. Uivo para o céu. Deixo no ar o cheiro agridoce da concha venusiana onde deságua minha alma. É meu cantar para o sátiro - meu convite à dança.
Aproximação. Um início de delicadeza. Mas te quero bruto - pele embaixo das unhas, gosto de sangue na boca, um pouco de dor onde pulsa a vida nesse instante. Faço-me cadela. Culpa dessa outra maldita que reverbera nas paredes do meu corpo. Solto o verbo sujo em teus ouvidos e passo a língua em teu rosto, teu nome, teu desejo. De pelos eriçados - qual bicho - deixo-lhe o cio marcado na pele das coxas - nos pelos da virilha. E te quero forte, lento, fundo. Quero aspereza, crueza, um pouco de hostilidade. Invasão, barbárie, curra. Porque não tenho medo - tenho vida. Porque agora - nessas horas em que violentas meu mundo - sinto vibrar o coração entre as pernas.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Confissões

Confesso-me culpada.
Todas as confissões estão hermeticamente guardadas sob a pele dos lábios. Conto se me beijares, me engolires, me arrancares a roupa. Conto se me lançares à cama, ao chão, à mesa do quarto de hotel. Conto apenas se disseres petulâncias dentro de minha boca, se me ateares fogo à carne. Conto tudo se vieres mais para dentro de mim, se tocares minha alma. Confesso meus pecados, peço perdão se me castigares.
Castiga-me. Mastiga-me. Entorta-me. Ama-me, enfim.
Confesso-me tua.


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Brevidade

Cansaço. O corpo pede cama, calma, mar. Tudo pede raspas de silêncio, vento, maresia. Brevidade salinizada. Ulceração sentimental e temporária. Garganta ardida de grunhidos contidos e arrastados pelo tempo não contado. Umas doses de veneno e um punhado de mentiras analgésicas, alcoólicas, semânticas. Filosofia barata de uma mente débil. O peito bradando em alto e bom som um bocado de tolices e efemeridades ordinárias - cão a ladrar por trás das grades. Uma beleza que existe apenas aos olhos alheios - alheios a tudo o que está submerso. Desfaçatez labiríntica e espiralada. E quanto mais pergunto, menos respostas busco - porque não quero saber. Não sei saber. Desvergonha assumida de uma mulher pelo avesso com sorrisos indecentes de canto de boca. Lábios carmim sem confissão pronta ou discurso decorado. Improviso ambulante de paranóias sobre a mesa de jantar. Porque não há coerência nessa fala, nessa prosa, nesse corpo. São devaneios, apenas. Meus maremotos sentimentais. Meu instante oceanizado e transcrito. Minha verdade sem nexo.

Crueza

Sou vísceras da cabeça aos pés - estou crua e pelo avesso. O estômago queima, os pulmões enlouquecem, o coração salta em desatino de fúria de amor. Sou mil monstros, mil demônios, outros tantos anjos sem pele - o que é a pele se minha alma é que grita pelos cantos? E essa lava que ferve e borbulha por dentro desses rios de curso duvidoso me tortura, me desfia um bocado de sonhos, me desafia a lucidez - maldita lava. E a ausência me encharca de álcool e me lança o fósforo aceso. É a saudade a queimar e reduzir a carne a cinzas e alma. Outro desvario dessa embriaguez de querer que tu me causas. Uma dádiva de não-existência de tempo, sombra ou restos. O começo do mundo. O extremo. Um amanhecer que desconheço e que me enche os olhos de luz - vertigem avassaladora da sua alma dentro da minha. Respiro-te e me abro, profunda, espasmódica, de olhos borrados, rosto ferido de tanto amar*. Pois é assim que me entrego: nua, crispada, inteira... em carne viva.


* Artur da Távola dizia que não havia coisa mais bonita do que um rosto de mulher felizferido de barba de amor...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Vício

Com teus dedos enroscados em meus fios, obedeço a uma ordem balbuciada em tom de amor. Teu demônio me pune por desafiá-lo ao meio-dia. Não sei distinguir teus modos - teus pensamentos são incógnitos à luz do dia. Só sei que me rasgas enquanto te peço carinho, e me acaricias quando te imploro pena de morte - porque a morte que vem de ti me faz renascer em doses homeopáticas e tresloucadas. Vício irrecuperável.


Reviro teus porões. Abro as portas dos meus. Banho-me no lodo de nossos medos e agruras. De rosto contra o chão, sinto cada ranhura do piso com as pontas das unhas quebradas. Ouço o som abafado dos teus passos e as batidas do teu peito aberto a crepitar sentimentos, como sal deitado ao fogo. E quanto mais me repeles, mais me desejas, ainda mais me acolhes. Junto as lascas e cacos e restos da minha alma desencontrada e troco pelo gosto do mar dos seus olhos: tua pele de encontro a minha. Promessas silenciosas de amor. Nossos infernos se cruzando.



Sem título

Noite mal dormida de frio e embriaguez. Palavras martelando a cabeça. Uma coisa estranha a explodir no peito. "É apenas meu coração", penso. 
Sinto-me nua. Sinto-me tão nua que tento me esconder para que não descubras como sou frágil. É a estupidez me assolando a alma. É essa coisa sem nomes ou registros ou certezas. É meu sentimento sem título, sem regras, disléxico. Porque eu não dou nome às coisas - as compreendo na carne. São as minhas verdades bambas e secretas, minha saudade platônica. Sim, sinto uma saudade platônica do que nunca vi, de lugares onde não estive e de calor que não senti. Releio Marisa (ou Mafalda) e entendo mais um pouco das intrusas saudades. Sinto-me invadida também. 
Não sei se sonhei ou se foram pensamentos que me assaltaram em meu estado de semi-consciência, mas vi estrelas no céu escuro de minhas pálpebras fechadas. E aquelas músicas tocavam, tocavam sem parar - todas elas. E senti medo. E me senti menina. E não quis me olhar no espelho e encarar minha cretinice vindo à tona. Mas é inevitável fechar os olhos. É inevitável não me deixar tragar pela maresia do teu azul-esverdeado (ou verde-azulado) que depende da força das marés - um espaço infinito em que nunca estive e ao qual me entrego e lanço mais a cada instante. Porque o mar me acalma. A maresia me transforma. O calor me inunda. A pele me acende. 
Dissipo-me em brumas. Desfaço a distância. Entranho em você, no teu sono, no teu gosto. Chego perto, longe daqui. Deixo meu cheiro em teus poros. Não volto. Deixo-me inteira em ti.

domingo, 4 de julho de 2010

Poema à tarde outonal - ou ao amor descoberto

Quando desisto de outros sentires
e me desnudo daqueles retalhos
é quando o dia verseja o queimor,
o sonho maciço
um bocado de amor
é quando a carne crepita em meu ventre
versos tão loucos quanto teus olhos
palavras tão roucas quanto as que dizes
sussurros, tremores, sentidos urgentes.
E coberta do sal do teu corpo
da água vertida do meio dos olhos
vejo-me livre do medo latente
medo que escoa ralo abaixo,
desejo que viaja alma acima,
arfares de corpo em outro corpo,
boca a sussurrar meu nome
a gritar imundícies dentro de mim
castigo osculante de modos diversos
lábios, língua, falo, vulva,
fome insana de coxas em brasa
cavalgada intensa rumo ao inferno
onde anjos repousam após a batalha.
E enfim - após a paz instaurada -
vibra no âmago o amor liquefeito
promessa muda de amor que se cumpre
torpor de gozo em sonho real
poesia cantada de corpos de amantes
amares despertos em carnes vibrantes
desaguam o presente em tarde outonal.
Tua ausência agora é passado
há em mim um bocado de ti
transbordando teu cheiro, gana, saliva
teu gozo, teus olhos, calor,
repleto da porção que repousa entre as coxas
repleto de nossos vestígios de amor.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

elíptica

Da fuga,
um arfar vadio
um encontro
um vacilo
um despertar monolítico
de um dormir sem sono
com pesar
sem sonho.
Como é doce a morte
sob as colchas,
retalhos do dia,
das horas, dos cacos do tempo,
porcelana mal feita
e lápide mal desenhada em meu corpo.
O travesseiro encardido
de olhos borrados me consola.
A roupa encarnada,
essa nudez desmedida de carne e alma,
esse mar ressacado de pequenos tremores e agruras;
a crueza do desejo desperto,
despertas, despertares oblíquos.
E se me afasto,
me buscas,
se me escondo,
me achas,
se me abro,
me fodes.
Vou, volto, permaneço.
Sigo elíptica.
Cerro os olhos e odeio teus modos
me enrosco em tuas pernas
a arrancar sangue da pele
que me cobre, conforta, adere.
E o o grunhir louco
tua voz a me chamar de puta
inclina-me, dobra-me, corta-me ao meio.
São teus dedos que me fodem o juízo.
É meu desespero aquoso
minha verdade branca
meu gosto pelo inferno.
Sou eu, apenas,
criança encarcerada nesse maldito corpo,
esse maldito corpo de mulher
a encarar o demônio e sorrir com dentes limpos e unhas sujas.
Esqueço as horas.
Ofereço o seio à besta chamada Tempo.
Não fujo.
Vou.
Volto.
Permaneço.
Elíptica.