EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

in natura

Na rispidez confusa dos ciclones
que se movimentam orgânicos com as marés
nesse dançar infinito e desencontrado
das intensidades de silêncios estridentes
de não-dizeres que gritam, espasmódicos,
em meus arroubos de loucura e bestificação
perco-me dos olhos sorrisos
e arrasto a selvageria pelos cantos da carne
nessa vertigem-medo de queda e tempestades
que ainda me faz quase criança
com o peito a vibrar mil tambores
e o estômago a cintilar traçantes estrelas cadentes
na noite sem fim do meu tempo.
Espumo, raivosa, verdades inaudíveis.
A vegetação acalma com o beijo lambente 
do vento morno que vez ou outra me cobre a alma
e me arranca confissões íntimas e desejos
no escuro do corpo, na curva acentuada
do caminho sem volta.
Chove torrencialmente nesse quintal de segredos
não balbuciados e mal escritos
e vibrantes e potentes e furiosos.
Transbordo e já não caibo mais em mim.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

dos seres

Cá estamos apartados das canduras, doçuras e bons cheiros, dessas belezas sintéticas mentirosas e felizes nos sorrisos forjados em larga escala. Não é que somos sal, suores, penumbra, bile e caos? Não somos assombro? Somos a foda raivosa e a explosão orgástica e sem pudores. Somos esses rostos comuns que se esbarram nas filas dos banheiros cheirando a amônia. Somos carne a caminhar para a putrefação – não somos, então, um pouco de morte? Somos o azedume queimando a garganta da embriaguez. Somos uma escória perfumada em lavandas para disfarçar o odor moribundo dos medos que atraem moscas, feito merda. Somos a única certeza de que não há certezas. Somos exatamente iguais e em tudo diferentes. Somos a principal atração de nossos privados shows de horrores. 
Somos tudo - e nada.



quinta-feira, 7 de outubro de 2021

dos surtos

Dos surtos do dia rebenta
essa fome desgovernada,
a gana compulsória de partida,
o desastre de ser entre sóis
e calores e bons dias maus.
Dos surtos de ser rebenta
o rachar de lábios sem saliva,
a pulsão de roçar a barriga
em quenturas distâncias alturas
quente longe alto.
Dos surtos do espelho rebenta
a besta de dentes limpos
a querer pousar corpo e língua
ao lado direito da cama
lado esquerdo do corpo
no refúgio secreto de pálpebras
pelas milhares de horas
que não foram.
E dos surtos de estar rebenta 
a saudade
de desencontros enganos,
e me banhar em transes fetiches
- loucura.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Hiato ii

Bate na porta o hiato do tempo
- dos futuros passados improváveis -
hiatos de lonjuras cartográficas
nesse mapa rascunhado de saudade.
(saudade do futuro?)
Bate na porta o hiato de crimes
inconfessáveis, desvãos de alma
e penas de pequenas mortes,
delitos cometidos no vão de espera
entre o trem e a plataforma.
E o par vidrado de argila,
olhos de esfinge,
segue na comoção dos detalhes
dos silêncios postados
em nossos calares nas madrugadas,
dias meses anos, uma década.
Estou morta ou sou eu-ressucitada
a bailar novamente em tuas sílabas?
Estou louca ou sou eu-fogo a reacender
o que era só cinza?
Estou vento ou sou eu-pedra a vibrar
a candura do lago?
Estou corpo ou sou eu-sangue a te ferir
novamente a pele, os gostos, a boca?
O tempo parou e pôs em guerra novamente
as cicatrizes, o desespero e os álibis
da pequena devassidão
de gritos guturais contidos ao longo
do tempo-hiato.
E todos os nomes que sou
- diaba -
seguem bailando no desfiladeiro
faminto de tua garganta.

[Andressa Furtado]

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Tempo moinho

Cá estamos na moedura
do tempo
a sovar indefinidamente
o relógio,
espremendo-lhe o sumo velho e doce
de lembranças e esquecimentos
dos cheiros verdes de grama cortada,
tábuas velhas enceradas,
mesas enfarinhadas de pão.
Soluços respingos
lamentos débeis
silêncios interrompidos.
Cheiros memoráveis
de angústias cozidas
pelo arrastar das horas.
Ferida semiaberta,
incicatrizável,
tampada com gaze embebida
em álcool e confissões.
Ouço longe
- infinitamente longe -
um choro de criança,
um gato a miar,
o grasnar do corvo.
A memória é a caneca fria
do café de ontem:
requentada e infalível.
 
Nenhuma descrição de foto disponível.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

mondo-carne

Da infinita contenda
entre pânico e doçura
do desenho mal forjado
dos deuses que invento
para justificar pecados
heresias, blasfêmias,
atrocidades do corpo
parido mil vezes do tempo
descarno verdades
espelhos reflexos
pequenos dramas
vistos a olho nu
e corpo mais nu ainda
balbucio a desordem
do mundo avesso
à realidade salgada
dos meus maremotos
e o nojo das mentiras 
sussurradas à meia luz
nos esconderijos sujos
dos impulsos quereres
- diapasão das madrugadas insones -
onde tudo é turvo
e fraudulento,
onde se esconde o homem
e se revela o bicho.
Na acidez impiedosa da pele
resvala o dulcíssimo querer.
Das pragas que me assolam
o mondo-carne
- cão raivoso a babar injúrias -
morro apenas pelas
crudelíssimas lonjuras
que me negam à boca
a saliva e o dulçor.


sábado, 17 de julho de 2021

pelas horas não contadas (ii)

No morno assombro da madrugada
amanhece fronteiriço o tempo
tecido em sutilezas esquecidas
nesse relógio-corpo desencontrado das horas
e afogado nas esquisitices bailantes
na tenacidade dos exageros
e incertezas dos dias.
Entardece displicente a ânsia,
matéria de sentires
no doce inferno
do festival de adoração
(carne, ossos,
sangue e delicadezas).
Tudo é o tempo que foge,
míngua, se espalha pela terra
abaixo dos pés,
urgência desesperada
a assolar corpo e espíritos
- todos eles e o mundo -
onde urge a breve morte
e o mais breve reviver.
Tudo é o viver pelas horas
não contadas,
presente passado a cada instante:
tempo-vivo,
tempo-morto,
tempo meu.

(poema adaptado da prosa de 23 de janeiro de 2010)

segunda-feira, 28 de junho de 2021

poentes

Nos mistérios poentes da tarde
repousam a paz alaranjada
e os silêncios dos minutos azuis
que repicam a vermelhidão
do sono suave e manso e doce
que toma o lugar do sal do dia
atrasando os ponteiros do tempo.
 
E as ardências causticantes da luz
vão morrendo no colo do mundo
a morte bonita de brisa morna
soprada nos olhos
calmaria que sucede o refluxo
das multidões enfurecidas,
sossego das nuvens corredeiras
moças dançantes no céu.
 
Nos mistérios poentes da tarde
reside a paz das cirandas de infância
de mãos pequeninas e perfeitas
e os cheiros açucarados das avós
com doçuras quentes à mesa.
 
Nos mistérios poentes da tarde
vivem os beijos nos olhos
e a lonjura das maresias
de quem é inteiro saudade.





quinta-feira, 24 de junho de 2021

do infinitivo dos dias

Hoje
espelho
corpo roto 
olhar injetado
dentes podres
babando putaria e ódio
meu demônio zombeteiro
é inteiro escárnio e naufrágio
meus desencontros oceânicos 
a perpetuar meu castigo e me
infernizar no infinitivo dos dias
no espaço sem tempo dos verbos
em cantos encantos sem cor.
Espasmos espumas gritos
carne carne carne
pele bile suicídio
embriaguez
cinzas
dor.


segunda-feira, 21 de junho de 2021

sem título

Nas madrugadas silentes
emerge o eu-monstro:
 da escuridão indizível das fomes
vem o desejo de deitar
com o cão que assombra meu sono
e me revira entranhas 
tornando retintos
os sonhares azuis
pelos segundos musgosos
que me arrastam à morte,
me mastigam as vísceras,
me drenam o sangue.
Nas madrugadas silentes,
portanto,
a carne não é mais branca
mas viva lava
e a sombra maltrapilha
se arrasta pelo porão do caos
a se banquetear com sobras
e se esgueirar no mangue dos dias
até ser noite outra vez.
Nas madrugadas silentes
eu [morta] vivo.