EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Germina-mundo

Se te chamo mundo,
me respondes vida,
valsa, verso.
Se te calo a noite
me devolves dia,
luz, miragem.
E de sorrir o mundo
e calar a noite
germino caule imaginário
gerânios assimétricos
em jardins suspensos
e incertezas vingadas
da grandeza de sorrisos
escondedouros de sombras e palavras.
Sorri mais, mundo,
e te abre em flor antes da primavera
no meio do outono que pousa
sobre as asas do tempo e do querer,
antes que parta a vida,
antes que cale o verso,
antes que termine o dia.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

antes da saudade

Enquanto o mundo rangia feito louco pela manhã caótica, minha boca confessava sozinha um desejo que salivava balbuciando um pulsar contente e não menos caótico que o vai-e-vem de passantes, automóveis, vidas.   
E o dia azul me chamava para o centro de outra turbulência, uma tempestade que me varria a razão e me fazia só sentidos - porque o corpo inconsciente caminhava em direção à paz pelo avesso, aos tremores, às erupções, às devastações que me aquietavam ao fim de tudo. E as relações de causa e consequência passavam a não existir, pois a razão havia sido tomada de assalto por uma coisa sem nome bem no meio do peito - um bicho que me devorava de dentro para fora e expunha a carne ao mundo, borbulhando vida e um bocado de flores. Enfeitava-me mais do que havia por dentro porque por fora havia apenas pele e pudor. E se pudor me faz incompleta, então olha meu sangue, minha carne, meu coração, minhas dúvidas latentes expostas - olha o que eu sou de verdade. Agora tu me vês assolada pelas horas, por um tempo indigesto e cruel. Mas agora tu me tens mais do que nunca, mais do que as certezas dos amantes comuns, mais do que a espera, mais do que as horas não contadas. E eu me desfaço em tua cama como um pequeno vulcão em erupção, uma desconhecida de longa data que te beija os olhos antes de partir, depois de urrar, antes de sentir a beleza da saudade que sempre me deixas...

segunda-feira, 18 de abril de 2011

- Boa noite, A.
- Boa noite, B.
- Boa noite, V.
- Boa noite, R.

Essas camas enormes de hoje em dia...

domingo, 17 de abril de 2011

el nido vacio

O ninho vazio
o silêncio da noite esquecida
entre meios, fins e adeus
jardins outonais
de flores secas caídas
a distância entre voz e ouvido
entre mão e pele
entre toque e desejo
maçãs, dedos, lábios*
brevidade e querer
carne, queimor, destempero
em dizeres alheios
- assombro -
olhos negros tristes
e saudade desconhecida.


* Tomei a liberdade de roubar as maçãs de Rubens Milioli.

sábado, 16 de abril de 2011

Para ganhar o mundo - adeus à infância

Esqueceu-se do nome
o menino pobre.
Esqueceu da lida,
dos versos, do dia,
esqueceu-se do dom.
Correu atrás dos cães,
das folhas caídas,
dos restos
- mordeu a língua.
Minguou feito lua.
Brincou no quintal de casa
e esqueceu o mundo.
Corre, menino pobre!
Corre na frente do tempo,
na frente do mundo,
na frente da vida,
porque senão
tempo, mundo e vida te deixam pra trás.
Corre na frente, menino pobre,
porque é hora de te tornares homem.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

florescer

Ele chegou antes que o sol beijasse a janela. Entrou sorrateiro por baixo do lençol para me [des]encontrar nua. Estava nua em todos os sentidos - sem roupa, sem pensamentos rápidos, sem proteção. O sotaque do Alentejo brindou meus ouvidos balbuciando aquelas duas sílabas carinhosas que só faziam sentido se ele as pronunciasse.
- Diz que me ama, Nina...
Sentia raiva por ele ser tão intolerante, tão arrogante, tão politizado, tão bonito. Mas havia algo macio naquela muralha aparentemente impenetrável. Havia um lugar nele que só eu conhecia - e ele odiava admitir isso. Era detestavelmente sarcástico quando desejava testar meus limites - mas aprendi a reconhecer pequenos sinais que denunciavam suas intenções [quaisquer que fossem].
Ainda estava magoada por três ou quatro palavras mal empregadas na noite anterior. Ele conseguia me machucar fundo, me afetar de um jeito que só afetam as pessoas de extrema importância. Resmunguei qualquer coisa que simulasse desinteresse. Mas não havia como fugir da voz, da presença, da perturbação vulcânica que ele causava quando me invadia com o cheiro do cabelo comprido, da barba mal feita, do cigarro insistente. Mais uma vez as pequenas ranhuras eram deixadas de lado, entre juras de amor e violação amorosa consentida. 
- Diz que me ama agora, Nina... pois foi assim que sempre quis te fazer um filho...
E meu ventre sorriu enquanto o sol lambia as cortinas do quarto.

sábado, 9 de abril de 2011

aqui, no tempo presente

Olhei com tanta frieza aquela foto que me assustei. Vi-me tão longe do lugar onde estávamos que o terror me tomou todo o corpo - horror no coração: horror porque nada na memória que aquele rosto me traz me melindra, me aquece ou excita. De repente não lembro mais do cheiro, do movimento que a língua fazia na minha boca ou de como era o sexo. Como as pessoas podem esquecer essas coisas? Sinto-me um monstro insensível. Talvez eu não seja um monstro - talvez o fim das coisas esteja mesmo fadado ao esquecimento. No fundo, é um pouco engraçado. Não, não é insensibilidade. Na verdade, tudo é tão bonito do lado de cá do jardim que não me importa mais nada que houve ou que possa ter doído em algum momento. Uma das coisas boas de ser quem eu sou - e como eu sou - é a velocidade com a qual "apego" e "desapego" acontecem. E saber colocar as coisas em tempos certos e lugares mais certos ainda - o passado precisa reconhecer seu lugar. E agora, de peito aberto e cabelos ao vento eu digo: como é bom estar sempre no presente! Aqui eu me sei, eu me sinto, eu me vejo. Aqui eu sorrio.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O que será (à flor da pele) - Chico Buarque



O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz implorar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita


O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite


O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os tremores me vêm agitar
E todos os suores me vêm encharcar
E todos os meus nervos estão a rogar
E todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz suplicar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

When the wild wind blows - Iron Maiden

terça-feira, 5 de abril de 2011

inquietação 1

cala
porque há barulho nesse recinto
e preciso do silêncio da tua voz
reverberando na calada da minha memória.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

sem título VI

odeio se me questiona
se me fere
se me fecha os olhos
e me abre essas portas do corpo
se me escancara
e me rouba palavras
fôlego
sofrimento
odeio se me navega
e me revira as marés
e me cria desmesuras
porque há diferença
- tanta diferença -
nesse reflexo macho de mim
porque te olho e me vejo linda
- violentamente linda -
e te procuro onde some
e te acho nessa lonjura de fim
onde há ausência
onde há segredo
onde há miséria
onde há saudade
desse futuro mal vingado
mal parido
que me sorri
com dentes gastos
e me viola
me corrompe
me sucumbe
bem no meio desse mar de sal
- no lugar do tempo atravessado -
no meio das coisas não vividas
lugar de querer contínuo
destino breve e imantado.

domingo, 3 de abril de 2011

fome

cães e lobos aprazem esse meu gosto
- mesma medida e proporção -
porque sou cruza estranha
interespécie
coisa de lince e serpente
nascida do ventre de Vênus
mestiça imperfeita e sem molde
fera que espreita, espera
o sinal de caninos saltados
nesses dias em que se mata a fome
com um tanto de morte
para satisfazer o que há, enfim, de vida,
de pulsar, de querer,
e voltar para a solidão
a que me condena o próprio corpo.