EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

elíptica

Da fuga,
um arfar vadio
um encontro
um vacilo
um despertar monolítico
de um dormir sem sono
com pesar
sem sonho.
Como é doce a morte
sob as colchas,
retalhos do dia,
das horas, dos cacos do tempo,
porcelana mal feita
e lápide mal desenhada em meu corpo.
O travesseiro encardido
de olhos borrados me consola.
A roupa encarnada,
essa nudez desmedida de carne e alma,
esse mar ressacado de pequenos tremores e agruras;
a crueza do desejo desperto,
despertas, despertares oblíquos.
E se me afasto,
me buscas,
se me escondo,
me achas,
se me abro,
me fodes.
Vou, volto, permaneço.
Sigo elíptica.
Cerro os olhos e odeio teus modos
me enrosco em tuas pernas
a arrancar sangue da pele
que me cobre, conforta, adere.
E o o grunhir louco
tua voz a me chamar de puta
inclina-me, dobra-me, corta-me ao meio.
São teus dedos que me fodem o juízo.
É meu desespero aquoso
minha verdade branca
meu gosto pelo inferno.
Sou eu, apenas,
criança encarcerada nesse maldito corpo,
esse maldito corpo de mulher
a encarar o demônio e sorrir com dentes limpos e unhas sujas.
Esqueço as horas.
Ofereço o seio à besta chamada Tempo.
Não fujo.
Vou.
Volto.
Permaneço.
Elíptica.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Pelas horas não contadas


Amanheço. Vou tecendo meu tempo em sutilezas esquecidas no travesseiro - esse tempo vivo. Um rasgo de sobriedade amarrotada revira meus olhos embaçados e transparentes. Minhas dúvidas aquosas desprendem-se de mim a deslizar pelas frestas por onde transborda o dia. Os resquícios gloriosos e cintilantes da noite que acaba de se despedir enchem o quarto. Você não dorme. Seus olhos de rio inundam tudo ao redor - uma inundação de fome e delicadeza corrente. Penso em um ou dois versos que escreveria em açúcar sobre uma colcha negra de cetim. Onde acho uma colcha negra de cetim?
Você ri, ou melhor, sorri. Não entende muito bem essas minhas metáforas estranhas, minhas esquisitices bailantes, minha mania estúpida de coisificar o que sinto. Seja bem vindo; eu me chamo Loucura.
O relógio marca doze horas. O sol arde do lado de fora. Esquecemo-nos do mundo ou terá ele esquecido de nós? Displicentemente entardecemos. Sutilmente encontramo-nos nessa ânsia de amar agora ou de deixar para depois - sim, nós podemos amar depois. A tarde pode esperar, cair, escurecer - pode tornar-se noite. Não temos medo do escuro nem deixamos de estar em paz. 
Anoiteço. A mobília muda de cor e as sombras não são mais da natureza da luz diurna. Com as mãos sujas do barro em que te moldei coloco mais um sorriso em teu rosto. Um sorriso mudo, ausente de palavras, de sons, de explicações. Não falamos porque não queremos ouvir - e esse silêncio é tão quente! Como pode faltar uma palavra que defina o que sinto se estou tão repleta disso, tão transbordante, tão transbordada? Essa nudez embasbacada de bálsamo e tomilho funde-se ao breu e à água morna. Esquecemos o tempo: agora é a hora certa; amanhã, quem sabe? Não faz diferença. Tudo é permanência, divindade, imperfeição desejosa de encaixe. Tudo é um pouco de mim, um pouco de ti - um bocado de nós. Tudo é o tempo que foge, que mingua, que se espalha pela terra abaixo dos pés, pela carne embaixo das unhas, pelo sangue no canto da boca - a urgência desesperada que assola o corpo e apazigua a alma após a breve morte e o mais breve reviver. Tudo é o viver pelas horas não contadas - presente passado a cada segundo: tempo-vivo; tempo-morto. Tempo meu. Minha memória e esquecimento.