EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 30 de novembro de 2008

Confissões de Molie


A noite girava ao meu redor; minha embriaguez não era alcoólica, era muito mais profunda e densa. Queria encontrar alguém que aplacasse aquele misto de fogo e dor, o desejo de ser possuída, machucada, amada - mesmo que por breves momentos.

Caminhei pelos becos escuros e mais imundos que encontrei pela madrugada. Minha experiência dizia, intimamente, que encontraria ali algo diferente de tudo o que havia experimentado. Tive homens, mulheres, casais; fui possuída em lugares inusitados e sob efeito de entorpecentes. Tive amantes de todas as etnias e crenças. Mas nunca - nunca - estive tão à margem do submundo como naquela noite.

O avançar da hora e a neblina densa que pairava pelos cantos escuros da cidade faziam meu pulso acelerar, uma onda de excitação inexplicável tomar o corpo todo. Estava úmida com a possibilidade do novo. Andava como um animal selvagem a farejar sua caça.

Passei por casais que se engoliam escondidos pela noite, gemendo, arfando, aproveitando o disfarce da escuridão para satisfazer suas fantasias. A visão da luxúria alheia excitava-me ainda mais, a ponto de sentir quase dor. Minhas mãos tremiam e excitei-me a ponto de quase parar e me masturbar ante a visão da mulher que engolia o jovem marinheiro fardado e visivelmente bêbado. Mas segui.

Imersa em pensamentos mais imundos que aquela ruela escondida e deserta, abri a pequena bolsa a procura do cigarro. Caminhando a passos rápidos, uma porta abriu-se e dela saiu um gigante de costas, carregando um violino e vestindo uma capa para abrigar-se da fina garoa gelada que caía sobre a noite. Ele deixava o ruidoso bar pela porta dos fundos. O homem encontrou-me e quase lançou-me ao chão. Desequilibrei-me sobre o salto, deixando a bolsa cair. Ele virou-se para mim, desculpando-se e, ao mesmo tempo, xingando. Abaixamos ao mesmo tempo para apanhar a bolsa.

De frente para ele, vi que encarava o decote da blusa e o volume dos seios. E quando nos levantamos pude ver seus olhos: verdes tão escuros que quase eram cinzas. Se já estava úmida com meus próprios pensamentos, o estranho acabara de me inundar. Só de olhá-lo, soube que era o que eu procurava. Era a minha presa.

Ele me devolveu a bolsa e sorri, agradecendo. Ofereci-me para segurar seu violino para que terminasse de vestir a capa. A chuva começara a apertar, e então caminhamos mais um pouco, em busca de algum toldo que nos servisse de abrigo. Ele perguntou o que eu fazia andando sozinha por ali àquela hora e, sem pensar, respondi que procurava por ele. Os olhos verdes me encararam com um sorriso malicioso e perplexo. Encostei-me à parede e, encarando o violinista, pus seu instrumento entre minhas pernas, por baixo da saia, simulando masturbação. Imediatamente, ele levou a mão à calça e apertou o volume que ali se formava, visivelmente excitado.

"Louca", balbuciou ele, incrédulo.

Deixando o violino de lado no chão molhado, levantei mais a saia e tirei lentamente a calcinha, sem parar de fitá-lo. Ele pegou a peça e a cheirou, como um bicho. Inspirando profundamente o odor do meu sexo excitado e úmido, soltou um pequeno grunhido. Abriu a calça e, de olhos fechados, esfregou minha calcinha em seu pênis já ereto, excitado, melado. O casal que se divertia há alguns metros já havia terminado e passava agora por nós, rindo. Mas nada nos deteve.

Senti o corpo grande me esmagando contra a parede, a mão forte buscando a entrada da minha vulva. Senti então o hálito morno dele contra o meu rosto, cheirando levemente à bebida e hortelã. E quando os dedos alcançaram minha pele quente e molhada, ele rosnou. Os olhos tornaram-se quase negros de excitação. Os lábios encostavam levemente em minha boca, e quando eu tentava beijá-lo, louca, ele sorria no canto da boca e desviava em direção aos meus ouvidos, sussurrando "cadela... cadela..."

Senti desejo e raiva vindos dele, uma mistura louca e explosiva que excitava até minha alma, como nunca antes. Como um cão, enfiou a língua em minhas orelhas e lambeu meu rosto, pescoço, minha boca. Beijou-me; beijou-me tão desesperadamente que pensei me afogar em língua e saliva, uma língua deliciosamente macia e densa, firme e macia. Havia, então, três dedos dentro de mim.

Seu pênis encostava em minha barriga, tenso e latejante. Enquanto eu quase morria de excitação, ele abriu minha blusa com a voracidade de uma besta, arrebentando todos os botões, que saltavam contra os paralelepípedos, tilintando, como o único som da noite, além de nossas respirações e do abafado som que vinha de dentro do bar.

Minhas unhas correram por dentro da capa e da blusa grossa, encontrando peito e barriga peludos, e arranhando toda a pele até alcançar a carne. Ele apertou os dentes e segurou forte meu queixo, obrigando-me a encará-lo:

"Gosta de força?"

Sorri. Senti um tapa acertar meu rosto e os dentes nos meus lábios. Minha pernas tremiam de medo e desejo. O rosto dele havia mudado. Beijou-me novamente e os dedos tocavam meu útero, de tão forte e fundo que vinham em mim. Enroscou a mão em meus cabelos e me fez abaixar e engolir seu pênis. Pude senti-lo em minha garganta, tão rijo e pulsante que fazia meu sexo contrair involuntariamente, quase em orgasmo. Mas logo levantou-me - também pelos cabelos - e me colocou de costas para ele, encostada na parede suja que fedia a urina dos passantes. Afastou-se um bocado e levantou minha saia de modo a ver minhas nádegas brancas e redondas, onde ficou parado, alisando-as com uma das mãos e masturbando-se com outra. Sentia uma lágrima correr quente pelo meu rosto. Sentia-me feliz e assustada. Sentia-me quase violada e sentia prazer naquilo. Era um monstro.

"Por favor..."

Senti novamente a mão forte me acertar, dessa vez na nádega. E logo ele me prensava novamente contra a parede, encostado em minhas costas. Seu pênis roçava entre minhas coxas, sem me penetrar. Eu queria mais, precisava de tudo, precisava dele. Logo percebi sua intenção: molhou-se na excitação de minha vulva e recuou um pouco, buscando penetrar-me por trás. As pernas falharam e quase sucumbi, mas os braços fortes me mantiveram de pé. O sexo incrivelmente teso me invadiu por trás e gritei. A dor quase me fez desfalecer. Soluçava sem forças, sendo currada como uma cadela por um outro animal, maior, mais forte. Mas ao mesmo tempo em que a dor era intensamente insuportável, o desejo crescia. Senti uma mão me segurando pelo quadril e outra vindo pela frente, me tocando o sexo, me masturbando e penetrando por onde eu mais gostava, enquanto ele me sodomizava. Logo a dor tomou uma proporção inexplicavelmente excitante, fazendo-me adorar senti-la.

"Puta... vadia... cadela...", ele gritava com uma ferocidade ameaçadora, e logo a porta do bar abriu-se novamente, de onde saíram dois ou três homens, falando alto e embriagados. Passaram por nós falando imundícies e gargalhando. Não podia ver claramente por conta da posição em que me encontrava, mas pude perceber que um deles parara um pouco à frente para observar-nos. Talvez estivesse se masturbando. Talvez tivesse se excitado com nossos gemidos e os gritos do meu amante. Talvez estivesse apenas observando.

Meu homem arfava e me mordia na nuca como se quisesse mastigar meu corpo. Ele me comia inteira: por trás, com o sexo; pela frente, com os dedos; pelo resto do corpo, com os dentes. Foi a primeira vez que realmente me senti inteira e de alguém, por mais estranho que pudesse parecer: era apenas um desconhecido.

O centro do meu corpo começou, então, a ondular-se, espasmodicamente: o gozo vinha coleante, vibrante, intenso como jamais fora. Comecei novamente a soluçar, sem forças. Mas o estranho continuou a me segurar, forte como um gigante. Minhas coxas estavam inundadas de mim, de meu gozo.

Senti o pênis aumentado de volume dentro de meu corpo, latejando e anunciando o jato quente que me preencheria.

Quase que por impulso, afastou-se de mim e continuou friccionando o pênis com a mão enorme, segurando sua base com força para conter o gozo e mandou:

"Ajoelha"

E eu, obediente, pus-me de joelhos à sua frente e recebi no rosto, cabelos, seios, um jato forte e espesso, quente, deliciosamente quente. E o grito do homem ecoou por toda a viela, quebrando o silêncio da noite fria. E quando pensei que nos vestiríamos e seguiríamos cada qual seu caminho de volta para casa, ele me suspendeu novamente e colocou minhas pernas ao redor de sua cintura, encaixando o pênis ainda parcialmente duro em meu sexo. Pude senti-lo crescer novamente dentro de mim, dessa vez em minha vagina, e pelos momentos que se seguiram, gozei e apanhei como uma puta barata, sendo espetáculo dos marginais, bêbados e indigentes que eventualmente passavam pelo beco escuro e fétido.

Estava apaixonada, perdidamente apaixonada pelo estranho que havia me currado.

domingo, 9 de novembro de 2008

sobre a primeira pessoa e o suicído amoroso...


A primeira pessoa é o ápice do egocentrismo: eu.
Quando escrevo em primeira pessoa, sinto uma importância egoísta que pode não existir para os outros. Mas eles - as terceiras pessoas - não querem saber de mim. Eles querem saber deles, querem olhar-se no espelho, querem ser Narciso. Mas não tu, amor. Tua segunda pessoa cobriu a primeira de flores e jardins invisíveis, de sons que fizeram eu bailar contigo. Criaste, então, outra primeira pessoa, maior, mais densa, mais valsante: nós.
Nós somos feitos de terremotos e ventania, de água salgada vertida dos espelhos dos olhos; somos o puro e devasso amor. Somos a raiva e a ternura, o pecado e a remissão. Porque eu, assim como tu, estou entranhada em mim, em ti, em todos. Somos iguais, porém diversos. Somos a semelhança entre o nascimento e a morte; somos o suicídio perfeito da alma: somos o recomeço a cada dia.
Então meu eu, menos egoísta e mais coleante, rende-se à morte. Quero morrer em teus braços, segunda-pessoa-única. Beije-me e feche meus olhos. Mata-me de amor.
Amo como uma suicida - pois todo amor leva à loucura, e a loucura, à morte. Amo em primeira pessoa a primeira pessoa, e tu - segunda pessoa - é o pouco da minha porção altruísta, é o que me leva a dar o que, inconscientemente, eu levaria para o túmulo.

sábado, 8 de novembro de 2008

sobre o esquecimento...


"Como é breve o amor e longo o esquecimento."
[Pablo Neruda]

O coração batia descompassado a espera de um sinal. Olhava a porta que não se abriria novamente, com uma esperança infantil de quem aguarda que o final sempre mude e se torne feliz. Ali, no silêncio da sala, percebeu como o apartamento parecia, de repente, imenso. A janela aberta que revelava um azul escuro salpicado de pequenos pontos prateados mais se assemelhava a uma pintura: contemplava-a de longe, acreditando que aquele céu era fictício, irreal, imaginário.
Acendeu o último cigarro do maço e percebeu as mãos trêmulas. Olhou o relógio. Sentiu uma pequena pontada no peito, uma dor desagradável, e uma ardência na garganta. Era o choro que insistia em estrangulá-la e sacudir o corpo em soluços incontidos.
O ponteiro menor já havia dado três voltas completas em torno do relógio, avisando que ele não voltaria. A porta não se abriria mais. A realidade atingiu seu peito como um raio, forte e fulminante. A sala nunca fora tão vazia e tão silenciosa.
Colocou-se de pé e caminhou em direção ao banheiro, trôpega, enquanto a tristeza dava lugar à raiva. A raiva era de si mesma, por esperar tanto dos outros e tão pouco de si. Com o punho cerrado e o rosto lavado das lágrimas que vertera, estilhaçou o espelho ao longo do corredor. Gritou. Gritou para dentro, sentindo o peito implodir. Com as costas contra a parede, escorregou até o chão, onde acalentou no colo os restos de coração que pendiam do peito aberto.
Estava morta.