EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 18 de setembro de 2010

Arderes

Arde.
Arde sem razão.
Arde porque arde.
Arde porque deixo arder.
Arde porque preciso que arda.
Arde porque sou louca.
Porque sou bicho.
Porque sou eu.
Mulher.
Ardo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Anaïs - parte III - delicatessen

O trânsito já não estava tão caótico. O belga sujo já não estava na portaria. Milagrosamente - ou por alguma razão que ignorava completamente - o elevador havia voltado a funcionar. A cabeça rodava um pouco e a boca estava seca. As mãos suavam. Não estava sofrendo crise de abstinência por causa da nicotina. O pensamento beirava o ridículo. O elevador passava lentamente pelo terceiro andar e imaginou que descer pelas escadas havia sido mais rápido. Mas não tinha pressa. Estava voltando para o refúgio do apartamento bagunçado e fedendo a cigarro.
Sexto andar. Pela primeira vez em sete dias desejava não estar sozinha. Enfiou a chave na fechadura e percebeu que havia deixado o som ligado. Al Green gemia docilidades em Simply Beautiful enquanto Anaïs deixava o cesto de roupas limpas sobre a mesa da sala. O vinho acabara. O blanquet também. Os croissants estavam velhos. O macarrão estava frio e iria para o lixo. Sentia fome. Precisava de mais vinho. Precisava sair novamente. Precisava saber aquele nome, aquele endereço, descobrir de onde vinha aquele cheiro. Mas aquela era uma fome desconhecida, um tremor estranho, uma sede sem razão. Uma violência ao corpo, uma inquietude de espírito. Um desejo mal desenhado pelos restos incólumes de algo que a perturbava e não partia. Al Green a fazia sentir leve. Queria dançar. Sentia-se irremediavelmente só.
A pia negra do banheiro estilo art-nouveau estava repleta de quinquilharias inúteis. Acendeu a luz e se olhou no espelho. Parecia cansada. Não tinha sono. Estava mesmo com fome. Precisava de banho.
Deixou as sandálias no canto do banheiro e tirou a roupa devagar, com o corpo tenso. A água quente sempre abria do lado esquerdo - devia ser alguma estúpida regra universal. Estranhamente reparava em torneiras e chuveiros de todos os banheiros e lavabos que visitava.
As gotas escorriam em câmera lenta pelo corpo, fazendo uma longa viagem até o ralo. Levavam consigo um tanto da angústia de Anaïs, como se a água pudesse levar tudo embora, exatamente como fazia com o suor e a sujeira. Mas as angústias estavam mais fundo e era preciso fazer força para que elas brotassem dos poros e se mandassem embaixo do chuveiro. "Fome miserável", resmungou enquanto deslizava o sabão pelos seios, umbigo, púbis. "Se ele me comesse, aposto que conseguiria dormir essa noite."
Deixou a água levar o resto de sabão e os pensamentos. Enrolou-se na toalha amarela e apanhou um vestido pendurado na cadeira - porque desde menina Anaïs odiava guardar suas roupas. Olhando-se novamente no espelho, achou ótimo manter os cabelos sempre curtos - isso facilitava a sua vida. Calçou outras sandálias e saiu ao encontro da delicatessen, e, já que estava experimentando novas sensações, iria também ao encontro da mortadela.
Dentro do elevador lembrou-se que esquecera novamente o cigarro. "Cabecinha de merda!", exclamou. Não subiria novamente. Resistiria. Irritada, talvez, mas firme.
A delicatessen ficava a dois quarteirões do prédio antigo e cinza de Anaïs. Não era de todo ruim andar para aqueles lados. Sempre havia velhas senhoras extremamente sorridentes a segurar seus cãezinhos, uma das poucas cenas que faziam Anaïs esboçar sorrisos. Ficaria velha e teria apenas um cão como companhia. Lembrou das notas espalhadas pelo chão do apartamento.
Atravessou o primeiro cruzamento. Ruído silencioso de rua às dez da noite. Pouco movimento de carros, poucas pessoas andando, distância do caos. O ar tinha cheiro de quase verão, onde as noites ainda pedem alguma coberta sobre o corpo. Veio o segundo cruzamento. "E não sei a cor dos olhos dele..."
A delicatessen estava vazia - tão vazia quanto a lavanderia - e o atendente não pareceu feliz ao perceber que ainda levaria algum tempo para poder encerrar o expediente. "Foda-se. Vai ter que esperar. Eu não estou com pressa."
Anaïs chegou ao balcão de conservas e embutidos e pediu blanquet, tomates secos e alcaparras.
- Qual é a melhor mortadela que você tem?
- A defumada.
- Ok. Pode ser isso mesmo.
- Quer provar?
Anaïs hesitou por alguns instantes antes de aceitar a prova. Não sabia a origem da repulsa em relação à mortadela, era simplesmente algo que não conseguia controlar.
- Obrigada - agradeceu, levando o pedaço do embutido à boca.
Mastigou lentamente, sentindo primeiro a textura e depois o sabor. Era forte. Deixaria marcas em suas papilas gustativas. Adorava o exagero de seus pensamentos. "Se ele pudesse me ouvir, riria da minha cara", imaginou.
Precisava de vinho, de mais vinho e de azeitonas chilenas. Uns croissants, umas baguetes e faria um banquete para desfrutar sozinha - poderia convidar Al Green para sentar-se à mesa. Escolheu três vinhos diferentes e juntou ao resto da compra.
O rapaz a observava com uma certa estranheza, pensando que talvez fosse louca. "Louca, completamente louca...", riu-se em silêncio.
As compras foram dispostas em duas sacolas e começava a se arrepender de ter que carregar tudo aquilo por duas quadras. Com alguma sorte, o elevador ainda estaria funcionando.
Entre sacolas, carteira e pensamentos inúteis, tentava sair da delicatessen quando um corpo grande e distraído a atropelou porta adentro, fazendo com que a sacola dos vinhos fosse ao chão.
- Porra! Olha pra frente!
Conseguiu, enfim, decifrar a cor dos olhos do intruso - porque, pela segunda vez no mesmo dia, ele estava invadindo o território de Anaïs. E sentiu raiva dele por ter estragado seu encontro com Al Green - porque ela estava decidida a sentar novamente entre as almofadas encardidas e ouvir os vinis até se embebedar ou adormecer - o que acontecesse primeiro.
- Vamos ver se você tem bom gosto... - disse, abaixando-se para conferir o que havia dentro da sacola que jazia ao lado da porta.
Talvez houvesse alguma razão para aquilo tudo, talvez fosse o destino, ou talvez ele fosse um maníaco que a estivesse seguindo. Podiam ir pra cama. Podiam ser amigos. Poderia viver o resto da vida com ele. Ou odiá-lo com todas as suas forças, como naqueles folhetins baratos que pendiam nas bancas de jornais.
Começou a imaginar sandices enquanto via o estranho se dirigindo ao balcão e pedindo para o rapaz repor a compra de Anaïs. Não ouvia o que ele dizia, como se aquilo fosse a cena de um filme mudo, mas se passando em câmera lenta. Todos os sons foram desligados. O mundo fora da delicatessen não existia. E ao mesmo tempo sabia que aquilo tudo era de uma estupidez atroz, ridiculamente fora da sua realidade.
- Vem, eu te levo até em casa.
Anaïs não respondeu. Consentiu caminhando para fora da loja, como se estivesse dopada.
Caminharam em silêncio, o mesmo silêncio constrangedor que os envolvera na lavanderia. Atravessaram as ruas sem olhar para os carros - como se o mundo realmente os tivesse abandonado. "Por que você está fazendo isso comigo? Porra, me deixa em paz...", pensava ao longo do caminho. E quando menos esperava, estavam à frente de seu prédio.
- Não quero que você suba. Deixe que eu levo.
- Tem certeza?
Silêncio.
- Não.
Abriu a portaria devagar. Precisava de tempo. Caminharam lentamente até o elevador, que por ironia do destino, havia parado novamente.
- Puta que pariu... Desculpe... São seis andares.
- Tudo bem.
Anaïs subia os degraus como se estivesse prestes a explodir, louca de raiva do síndico, do porteiro, da empresa de manutenção, do atendente da delicatessen. Nada fazia sentido. E o cheiro da camisa branca e limpa dele impregnava o corredor. E estava se cansando, porque as subidas são sempre mais difíceis. E não tinha cigarro. E estava com fome.
- Me come - disse Anaïs de súbito nas escadas entre o 3º e o 4º andar.
- Não.
A negativa arrebatou Anaïs como um raio. Sentiu-se ridícula outra vez. Humilhada. Pequena. Menina. Desatou a chorar. Soluçava como se a morte tivesse anunciado um fim próximo, como se não houvesse mais salvação para sua pobre alma.
Mais uma vez o estranho a acolheu no peito seguro, enquanto despejava todas as suas fúrias ao mundo de uma única vez.
- Eu preciso muito que você me machuque...
As sacolas haviam sido postas no chão e os dois beijavam e lambiam e acariciavam o outro como bichos, entre arfares, grunhidos e pequenos guinchos que entrecortavam as respirações e o som abafado de alguma tevê ligada no andar de cima. As mãos de unhas bem cortadas sentiam Anaïs entre as coxas. Ela mordia a outra boca prestes a arrancar nacos de carne dos lábios do homem, fazendo com que reagisse mais fundo com os dedos dentro dela.
- Me machuca... Eu te odeio... Me fode...
Ele abriu lentamente o zíper da calça para que a pequena mão de Anaïs pudesse sentir como estava duro, como queria machucá-la, como desejava fazê-la gritar. E ela soluçava cada vez mais, chorando, apertando a mão dele cada vez mais entre as pernas, como se fosse esmagar-lhe os dedos. Era a primeira vez que fodia um estranho.
- Diz que me ama... eu odeio você... odeio... me machuca... quero que você faça doer... preciso sentir alguma coisa, pelo amor de Deus...
Ao invés de penetrá-la, apenas a abraçou forte. Retirou lentamente a mão do meio das coxas de Anaïs, beijando-lhe suavemente os olhos encharcados e vermelhos.
- Vem. Vamos subir.
E, pela segunda vez no mesmo dia, amaram-se antes de tudo.

(continua...)