EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

drops

O mais bonito nisso tudo é me ver através dos olhos do outro - como se pudesse me enxergar a partir de um corpo que, mesmo não sendo meu, está tão contido em mim quanto essa carne que me cobre o espírito.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Clementine e o fantasma deposto

Subiu a rua até os pulmões gritarem. O ar gelado e seco da madrugada sufocava mais do que sua vida inteira. E o nojo de ser quem era podia simplesmente ser expulso aos gritos, aos solavancos, às bofetadas. Era exorcizada todas as noites aos pés dos desejos alheios, onde escondia e amenizava sua culpa de menina. Cada vez que imaginava que se tornar mulher havia sido lento, doloroso, profundo, sentia vontade de chorar. Perdeu-se entre lençóis sem nome, sem rosto, sem memória. Guardava apenas uma memória do que pensou ser amor. E o que era bonito havia sido jogado na sarjeta com o que ela tinha de inocente, junto a um punhado de mentiras que sua meninice teimava em acreditar.
Clementine estava novamente naquele canto escuro dos seus sonhos, onde monstros e fantasmas a assombravam e o grito ficava contido na garganta. Mas o gosto amargo dissipava-se lentamente na boca, o suor secava na pele, e o frio ia embora aos poucos. O que trouxera aquelas sensações em tempos distantes não mais existia. E estava ali, parada, olhando aquela sombra se desfazer, virar pó, sumir no tempo abaixo da terra, debaixo dos pés. E entendeu, enfim, que o fantasma só existia porque ela o havia inventado.  Entendeu, mais claramente ainda, que cabia a ela fazê-lo morrer de uma vez por todas. E, pela primeira vez em todos aqueles anos, sentiu-se leve. E o sonho ganhava cores aos poucos, ganhava outros sentidos, mas apenas um lugar: a paz dos sinos que cantarolavam ao vento, o lugar de palavras sussurradas que a chamavam para a realidade doce de quem sai do sono, do estado de dormência, do mundo turvo.

Clementine sorriu ao abrir os olhos - havia despertado do sonho estranho para sorrir ao mundo. Lá estava ele, dormindo bonito, dormindo em paz. Não, ele não era irreal. Não era uma invenção louca das suas frustrações. Não era plástico - não ele. Ele existia, existia e estava ali, ao seu lado, esperando que ela se libertasse de seus fantasmas, de seus próprios demônios. Esperava com o tempo. Esperava para poder, enfim, fazê-la sorrir brejeirices. Esperava para poder engravidá-la a cada toque, a cada beijo, a cada olhar cúmplice. Esperava para fazê-la feliz sem culpa ou remorso, sem mentiras, sem promessas. Simplesmente esperava. E a encontrou inteira. E ela se sentiu inteira. E ele havia feito aquela mulher descobrir o que era o gozo perfeito, a paz desmedida de quem morre e renasce pleno a cada instante compartilhado. Clementine sentiu tudo o que achava que não existia. Sentiu-se perfeita por dentro de sua loucura, de seus meios tortos, de sua irracionalidade. Sentiu que havia uma mulher diferente sendo parida dela mesma, uma outra que não sentia medo, que ria dos fantasmas insistentes que não mais faziam seu pulso acelerar. Ele não mentia - mesmo quando não falava, confessava com os olhos o que precisava ser sentido, muito mais do que dito. E jazia em seu sono honesto, murmurando palavras que não dizia de olhos abertos. E ela sorria, sorria com o sol que iluminava os olhos pela fresta verde da janela do quarto da árvore. E os lábios do outro, entre suspiros e palavras desencontradas, repetiam a primavera que brindava as outras estações.

Clementine não sentia mais medo. Estava plena de si.