EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

terça-feira, 30 de abril de 2013

dos silêncios compartilhados em lugares públicos

Descobri no meio dessa minha bagunça errante o teu silêncio. Foi mais silêncio que tudo, confesso. Porque eu não precisava que me dissesse muita coisa ou que me fizesse falar. E os nossos silêncios se encontraram na mesa do almoço, enquanto eu tentava engolir a comida que nem tinha gosto. E eu me sentia um pouco fria, um pouco morta. E vestia aquela saia estampada que você tanto gosta. E me lembro que não conseguia te olhar, que falava baixo olhando a comida que não me apetecia tentando conter o choro. Sentia uma aspereza estranha por dentro. Conseguia ouvir melhor a conversa das outras mesas do que a minha própria voz. Não sei de fato se você conseguia entender tudo o que eu falava - que foi bem pouco, na verdade - mas o fato é que você estava lá. Não me analisou. Não tentou salvar minha vida. Não me prometeu uma cura milagrosa pr'aquela dor estranha. Simplesmente estava lá e nem queria ser notado. Dava meios sorrisos toda vez que meus olhos se levantavam em sua direção. Eu pensava, honestamente, que estava tão fodida da cabeça que talvez você não conseguisse achar muito sentido no que eu dizia, porque eu parecia sem sentido até pra mim. Eu precisava exatamente de um silêncio compartilhado de cumplicidade velada. Fez sentido - tudo fez sentido. E te amei ali, na calmaria no meio da multidão.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

dos gostos de quando me beija o mundo

Gosto da tranquilidade da tua voz. Gosto do cheiro que me deixa na camisola mesmo três dias depois de ter estado na tua cama - porque teu cheiro mora em mim, em cada canto da minha memória. Gosto do teu desejo de me fazer um filho. Da tua vontade de me machucar quando diz que me ama, quando me olha como se quisesse me engolir viva - de como me engole viva. Gosto do teu disfarce de calmaria. Gosto dos dias que estão por vir. Do roçar da tua barba nesse espaço entre meu nariz e meu lábio superior, dos seus dentes na minha pele. Do gosto que me deixa quando me beija o mundo.

sábado, 13 de abril de 2013

meios felizes sem happy end


Dos destroços atravancados pelo caminho, surgem-me doçuras de dias passados. A cor indecifrável que te pintava os olhos. A morte inesperada - afinal, quem espera a morte? As danças prometidas em bailes mudos. A paz remoldada em turbulência arredia e salgada. Porta-retratos virados para as paredes encardidas da memória. Os dias ensolarados de saudades e presenças. O mar revolto. As tempestades sequestradoras de sonhos bonitos - porque o mau tempo eventualmente é algoz de alguma beleza azulada. Uma história bonita sem happy end. Nem toda história precisa de final feliz pra ser contada pelo tempo que a memória permitir. Porque sempre fomos criaturas mais de meios do que de fins. Inteiras enquanto estivemos lá. Prontas a continuar [inteiras] - outras histórias. Ponto final.