EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 31 de março de 2011

janela

grita teu nome
teu dia
tua sombra
diz-me teu tempo
tua vontade
desejo
faz-me deidade
entidade
coisa
ao que teus olhos pedem
ao que teu corpo implora
quando teus joelhos tremem
e tu ordenas
pedido
perdido
me olha pela imagem no espelho
e me descobre estranha
ferida
crua
grita meu nome em silêncio
de sílabas marcadas e tensas
e encaixa teus soluços e dramas
em minha garganta;
olha a janela de flores
- teu jardim suspenso -
porque amanhece o dia lilás
iluminando a pedra fria
daquele outro mundo
do outro lado
do lado avesso
avesso do canto do quarto.

quarta-feira, 23 de março de 2011

maresia

Surto
em meio à espuma espessa
ao sal ardido
à distância
encontro-me em paz estranha
com os pés na areia
com o corpo n'água
e pelo avesso
salteada de ardências
e arrebentação
sem ser palavra alguma
sem ser coisa
sem ser tempo
inflamada
com a salmoura que me lambe os lábios
que me tinge o corpo
que me põe de lado
e me sangra a ideia
e me fere a carne
e cicatriza
alimenta
alcooliza.
Surto -
mareada e patética.
Transbordo maresia
e me abro à espuma efervescente
que me devora as coxas:
é o mar que me faz de puta
e me fode em tua ausência.

terça-feira, 22 de março de 2011

confissão - Clementine e o segredo do quarto da árvore

Clementine aventurou-se novamente no quarto da árvore - a boca tremia e a pele descascava-se inteira, deixando a alma em evidência. O claustro ainda tinha o cheiro que ela havia deixado antes - madeira ralada e sexos em atrito. Precisavam de poucas palavras - de palavra alguma. Sentia-se um pouco criminosa, pois invadia furtivamente o pequeno mundo que começava e acabava dentro do quarto e depois partia. Não perguntava nada, apenas sentia o corpo sorrir para dentro e sorria de volta para ele. Estava permissiva e incrivelmente aberta. Experimentaram ardências e quenturas - havia muitas cores em todos aqueles gostos e texturas. Poderiam reinventar o que os homens chamam de arte - porque eram deuses e aos deuses tudo é permitido. Clementine era, então, uma mulher parida dela mesma - renascia do seu próprio ventre. 
Clementine partiu novamente - foi compartilhar seu segredo à distância, tendo a lua como testemunha grave e branca da confissão de amor que deixara no corpo surpreso do quarto da árvore. E Clementine retornou:  Clementine retornou para ver de perto os estragos que havia causado - porque era devastadora, petulante, descarada. Definitivamente, não ligava para as tempestades - embora tivesse medo delas, vez ou outra atrevia-se a se banhar no que lhe era ofertado.

quarta-feira, 9 de março de 2011

o amante

Clementine entrou escorregadia naquele quarto. O mundo emudeceu nublado e cinzento do lado de fora da brancura. O tempo não havia realmente passado - porque sabia que era apenas um conceito não-sentido usado pelos normais para criar justificativas e finalidades ansiosas. Clementine sentia apenas que estava repleta de um tempo perene, incessante, sem pontuações, justificativas ou paradas. E tudo fazia muito sentido porque não buscava sentido nas coisas - encaixes perfeitos de vícios tortuosos e sorridentes. E sempre havia continuidade do ponto onde haviam parado, como se tivesse acabado de se despedir daquela cor que adorava nos olhos do outro. Era sempre um estado de ímpeto, de calma, de desejo - o estado de todas as coisas, de todos as maneiras. Despia-se mesmo antes de estar completamente nua, sem palavras ou conversas prolongadas. Sentiam-se antes da proximidade dos corpos. As peles sorriam, esperançosas e acesas - iluminavam a árvore, a parede, o dia. Deslizou lentamente para junto do outro corpo, feito serpente, feito gato, feito bicho bonito. E então não havia mais paredes, não havia mais teto, não havia mais árvore, não havia mais pensamentos. O foco estava nas sensações de pele, de resposta imediata do seio ao toque, de línguas, de pulso vibrante abaixo das cinturas, onde entendiam-se os sexos e encaixavam-se os desejos nunca contidos dos sempre-amantes. Ele se acolhia trêmulo no refúgio quente e macio de Clementine, longe de todas as neuroses do resto do mundo. E Clementine o recebia de coxas-portas abertas - anfitriã-meretriz amável e molhada. E seus orgasmos começavam no momento em que seus sexos se cumprimentavam em línguas, antes de qualquer invasão, antes de qualquer barbárie. Era um gozar mesmo sem gozar, um gozar permanente de delícias de pele e amor. Um gozar de ais gemidos e sussurrados e contidos. Era um gozar que Clementine só experimentava naquele quarto - porque aquele quarto era qualquer lugar onde o outro estivesse -, naquele corpo, naquele tempo que só existia quando estavam em transe magnético. Não havia maledicências - as más palavras apenas exprimiam o jorrar orgástico e sorridente dos corpos. Os medos foram expulsos definitivamente - havia sustos deliciosos e entregas consentidas de corpo inteiro [um desejo de violação e conquista de todos os cantos que o amante pudesse tomar]. E o prazer arrastava-se e passeava por sensações e choques térmicos avassaladores propiciados pelas línguas perversas dos amantes - o frio doce tornava-se quentura instantânea e torturante que vertia em sal líquido na boca de Clementine. E as pequenas confissões nuas e suadas proferidas pelos lábios em estado de graça enchiam o peito da pequena de sorrisos e desejos.

Clementine levantou-se com o dia. Vestiu-se e beijou o sorriso e os olhos adormecidos do outro, dizendo-lhe segredos e fazendo confissões que ele não lembraria depois que acordasse - ele despertaria apenas com a sensação da paz turbulenta e sexual que Clementine deixara no quarto, nos lençois, no cinzeiro. 

Clementine ganhou a rua. Sentiu saudade. Desejou loucamente que ele não partisse para nenhuma terra distante.

sábado, 5 de março de 2011

That smile leaves me weak. That laugh makes me believe i am ice cream and i try to stand still. I love the way you make me hate you. I like it when you scratch my world, when you drive me out of my head. I love when you call me bitch, when you say you'd love to hurt me and you love me after that. Our crimes are perfect. Our sins are even more perfect. Nobody knows them. Nobody really knows us.

quinta-feira, 3 de março de 2011

citizen of the world

Sou um carregamento de inquietações. Não consigo conviver com gente pequena, de mente pequena, de desejo pequeno. Não consigo viver com mentes limitadas - gente sem opção se agarra à qualquer coisa. 
Por isso sou cidadã do mundo: não me agarro a nada. Pego carona no vento. Não crio raízes. Não vivo com medo - e quando o medo me assola, não me petrifica. Pelo contrário: me faz mover. Porque "longe é um lugar que não existe"*...


* Longe é um lugar que não existe é um título de Richard Bach. Confesso que não li o livro, mas adorei o título... :)