EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Clarisse - Parte I

Clarisse conheceu Yves em um café, quando sua vida parecia estar voltando ao normal após perder o bebê.

A gravidez a fizera afastar-se dos negócios da família. Desde muito moça, pelo fato de sua mãe não ter parido um filho varão, Clarisse acompanhou seu pai às reuniões em seus clubes noturnos, destilarias e até em prostíbulos que mantinha. Foi criada e educada (muito bem educada) para administrar os negócios caso o pai viesse a falecer. Mas como ele mesmo dizia, não havia como envolver-se com tudo aquilo sem sujar as mãos. E, pelo curso natural das coisas, Clarisse aprendeu a manejar armas de fogo com uma destreza que nem todos os capangas do velho possuiam. Precisava manter-se viva, pois Salvatore havia colecionado incontáveis inimigos. Qualquer pessoa daquela família seria o alvo perfeito para atingi-lo.

Acabou envolvendo-se com o sócio de seu pai, um homem frio e sem escrúpulos que a cortejava incessantemente desde que a conhecera. Era sedutor e irônico, mas sua parte nos negócios incluía o trabalho sujo - que ele fazia com um largo sorriso no rosto. Clarisse já havia presenciado alguns acertos de contas e outras negociações feitas por Vincenzo - ou Vince, como era chamado pelos mais íntimos. Não concordava com seus métodos nada ortodoxos, mas estava, na maioria das vezes, ao seu lado.

Em seu leito de morte, o velho Salvatore chamou Vince e Clarisse e deixou com o jovem gangster a incumbência de tomar conta dos negócios ao lado da filha. Isso incluía proteger Clarisse a qualquer custo, contra tudo e contra todos. E pediu que a filha desse a Vincenzo um filho homem.

Pouco tempo depois da partida de Salvatore, Clarisse engravidara. Por medida de precaução, Vince a afastara dos negócios, pois sua saúde estava frágil e queria que ela se ocupasse das coisas que as mulheres se ocupam nessa fase, o que permitiu que ele levasse o negócio livremente a pulso de ferro. Mas a gravidez de Clarisse não vingou, o que a abateu profundamente por algum tempo. Sentiu-se incapaz de atender o último desejo de seu pai. Procurou, então, ocupar-se por algum tempo de outras atividades.

Mas sua vida mudou completamente ao entrar no café que ficava a apenas algumas quadras do lugar que Vincenzo chamava de escritório. O destino de Clarisse estava sendo selado ali, exatamente naquele instante.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Crônica natalina

Domingo, 20 de dezembro: a pequena "restauração" da sala de estar é finalmente concluída, após duas ou três semanas de trabalho árduo dos pedreiros de casa mesmo - nós e o noivo de minha irmã. Percebo que a minha parte do trabalho não terá o resultado esperado - chão de tacos soltos sempre dá um trabalho miserável. Aquela bendita cola que promete resultados mágicos não parece querer dar jeito na situação. Tudo bem. Pelo menos tudo ficará bem para o Natal. Faltam apenas alguns detalhes - limpeza, pendurar o quadro novo e esperar a loja entregar o sofá novo e a mesinha de centro.
Segunda, 21 de dezembro: começa a fase limpeza. Estamos todos quebrados e imundos. Cada um faz um pouco da etapa fatídica. Resolvemos ir à tal rua dos lustres para comprar um abajour que combine com o novo clima contemporâneo da sala de estar com uma parede vermelha. É avant garde. Mamãe entra em todas as lojas do quarteirão e nos faz suar como porcos ao sol de 40°. Acaba escolhendo um modelo da última loja em que entramos, que por acaso tínhamos sugerido no começo de nossa incursão que fosse a primeira. Tudo pela nova sala.
Terça, dia 22 de dezembro: vou trabalhar e ligo a cada 30 minutos para saber se entregaram o sofá. Nada. Nem sinal. Resolvo ligar para a loja. O vendedor me passa o telefone do galpão. A simpática Andréia me atende, dizendo que a entrega será feita apenas no dia 23. Podemos sair, então, para finalizar nossas compras natalinas. Encaramos o shopping desesperadoramente lotado. Tudo bem. Temos crianças felizes. Nossos pés é que nos matam. Fome e sede também. A praça de alimentação mais se assemelha a uma praça de guerra. Melhor não arriscar. Resolvemos tomar uma cerveja no boteco pé sujo da esquina. O China - o atendente mal humorado mas gente boa - nos serve alguns pastéis e meia dúzia de cervejas. Lavo a minha alma. Tentamos não olhar o bueiro aberto ao lado da mesa - se os pastéis estão ótimos, para que estragar o clima?
Quarta, dia 23 de dezembro: chegou o dia. A ansiedade por ver a sala nova totalmente montada nos corrói, quase não dormimos de ansiedade. O dia passa. A tarde chega. Nada. O interfone não toca. Ligo novamente para Andréia. O telefone não atende. Inferno astral. Sete, oito horas da noite. Conformamo-nos com o sofá velho mesmo.
Quinta, dia 24 de dezembro, meia-noite: meu celular - que não estava no modo silencioso - grita ao meu ouvido, me despertando do sono bom. Eu atendo muito injuriada e vejo que é um número com identificação bloqueada. Isso me irrita profundamente, principalmente no meio da noite. Digo uma meia dúzia de "alôs" e a pessoa do outro lado se limita a me ouvir. Isso me irrita mais ainda. Algumas pessoas não perdem certos hábitos. Ex-namorados e velhos vícios. Por isso - entre outras coisas - tornam-se "ex". Custo a dormir novamente. Está calor. Penso novamente no sofá. Que se dane, ainda temos o bom e velho "tobogã". O sono vem novamente. Perco-me em algum sonho estranho. Ao longe, uma campainha vai tocando. O som insistente daquele som semelhante ao meu interfone me desperta. Ouço agora o telefone tocando. Minha irmã atende. Não é um sonho. Olho o relógio: duas horas da manhã. Meu primeiro pensamento é minha avó. Telefonemas de madrugada nunca são boas notícias. Minha irmã entra no quarto de meus pais. Bate um desespero pensando que realmente algo de ruim aconteceu. Ela me olha e diz que o sofá chegou. Vou até a janela e vejo o caminhão parado em frente ao prédio. Realmente não é um sonho - está mais para pesadelo. Visto-me de péssimo humor e desço os três andares - de escada! - para abrir a portaria. Dou meia dúzia de broncas nos entregadores - coitados - que estavam fazendo entregas desde as sete da manhã do dia anterior. Compadeço-me e resolvo ser simpática. Precisamos tomar cuidado para a descompensada da síndica não chamar a polícia por causa do movimento suspeito às 2:10 da manhã. Não posso reclamar, pois eu mesma chamaria. Ninguém acreditaria que um sofá pudesse ser entregue às duas da manhã na véspera de Natal! Não deu outra: enquanto os rapazes colocavam o sofá novinho em folha na minha sala, o motorista do caminhão era surpreendido por uma viatura com dois policiais militares. Sorte a dele que eu estava de prontidão na janela e acenei aos homens da lei, sinalizando que estava tudo bem.
2:40 - eles vão embora e nós continuamos na sala, namorando o sofá novo, como um bando de bocós. Meu pai resolve acender o abajour para testar a iluminação. Percebo que somos uns desocupados. Voltamos, então, todos para as respectivas camas, num frisson para que o dia logo amanhecesse e pudéssemos terminar a decoração. Adormeço uma hora depois, após relatar o ocorrido numa ligação interurbana ao meu namorado.
Às seis da manhã estou novamente de pé, pensando que a sala era o menor dos meus problemas naquele instante. Resolvo sair e me livrar do peso que ainda me incomodava e tirava meu sono, para que pudesse respirar mais facilmente e pensar em começar realmente o ano novo de alma lavada. E sala nova, claro.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

para servir de inspiração...

E eis que o lobo - enorme, grave, cruel - uivou dentro da boca da mocinha - no fundo, uma cadela sem escrúpulos que sucumbiria aos seus desejos mais imorais.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

meu gigante

Amo um gigante de mãos grandes e olhos verdes incandescentes. Amo de amor espontâneo, livre, imensurável. Amo sem mágoa ou ressentimento, sem medo, sem amargura. Amo, simplesmente. Inteiro.
Ele é a força, a voz, o coração: ele é o amor em mim.



great post...

http://e-agora-jose.blogspot.com/2009/12/accept-losing-more-than-you-ever-had.html

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Clarisse


Olhou o papel e suspirou profundamente, com pesar. Dobrou a pequena folha e a colocou de volta dentro do envelope, fechando em seguida.
- Quando? - perguntou ao homem sentado do outro lado da mesa.
Ele arregaçou a manga esquerda do paletó escuro e olhou longamente para o relógio, voltando, então, os olhos ao rosto da mulher. A marca fina que se formava ao lado da boca simulava um sorriso que respondia a sua pergunta. Mesmo por trás da fumaça do charuto e da luz fraca, era possível ver o prazer cruel estampado em seus olhos, traçando finas linhas vermelhas que se escondiam além do que era possível enxergar e compreender. O silêncio da sala era apenas entrecortado pelo som de fagulhas quando o charuto era tragado e pela fumaça lançada ao ar logo em seguida.
Levantou-se e passou as mãos pelo corpo, alisando a saia bem cortada. Calçou o sapato de salto alto e se dirigiu ao espelho rachado que pendia no canto da sala. Tirou de uma pequena necessaire um batom vermelho que retocou tristemente. Viu-se cansada e mais velha, fechando os olhos para tentar achar um pouco da coragem que ainda lhe restava para seguir adiante ou para mudar completamente a história. Na verdade, tudo não passava de uma escolha.
Perdida dentro de si mesma e encarando o vazio dos olhos pintados, sentiu as mãos dele em sua cintura e o hálito amadeirado do tabaco cubano em seu pescoço. Com os corpos juntos, ele a balançou suavemente para os lados, como que dançando. Seu reflexo era sarcástico.
Sem encará-lo, dirigiu-se à mesa e apanhou a pistola brilhante que repousava sobre ela. Verificou o cartucho e seguiu em direção à porta, sem olhar para trás. Antes de abri-la, sentiu a mão dele agarrar seu pulso e puxá-la de volta. Ele ainda sorria com o mesmo ar sarcástico. Passou os dedos em seus lábios com força, esfregando e borrando o vermelho do batom.
- Você não vai precisar disso.
Beijou-a em seguida.
- Haja o que houver, não chore, não hesite, não se arrependa. Não me decepcione.
Com os olhos queimando, saiu da sala. Caminhou lentamente pelo corredor comprido e escuro que levava à outra sala. Seus passos eram lentos e pesados, e desejava que o tempo parasse para que pudesse encontrar outra saída. O som do sapato de salto ecoava cruelmente pelo corredor.
 A mão apertou a maçaneta com força antes de girá-la. A única diferença entre as duas salas era a falta de fumaça nessa última, e o fato de o homem ali estar amarrado à uma cadeira, amordaçado e vendado. O barulho da porta fechando atrás de suas costas era uma sentença da qual não poderia recorrer. Com o barulho, o homem agitou-se, tentando reagir a algo que ele não compreendia.
Sentindo uma lágrima correr, respirou fundo e foi para junto do homem, que imediatamente reconheceu aquele perfume. Agitou-se ainda mais.
Deixando a arma sobre a mesa, tirou-lhe a venda dos olhos e colocou-se de joelhos à sua frente. Ele tentava falar, mas a mordaça o impedia. Seus olhos desesperados clamavam por alguma explicação. Ela apenas repousou a cabeça em suas pernas e chorou em silêncio.
Após instantes intermináveis de pesar, levantou-se novamente e apanhou a arma sobre a mesa.
- Perdoe-me. É melhor que seja eu a fazer isso.
Ele agora chorava, sem compreender o que acontecia.
Ela se sentou em seu colo e, com a arma na mão, retirou-lhe a mordaça.
- Não diga nada, por favor.
- Mas...
- Sempre amarei você.
- Meu D...
Antes que pudesse terminar a frase, ela o beijou - um beijo passional, cheio de culpa e remorso, cheio de amor.
Levantou-se novamente, abandonando o colo do amante, que permaneceu de olhos fechados, ainda guardando o gosto daquela última recordação.
Atirou. Rápido. Sem dor. Morte.
Destruída, caminhou de volta pelo corredor escuro. Estava morta também.
De volta à sala, foi recebida pelo imutável sorriso irônico do outro homem, que a abraçou sem se importar com a blusa de seda branca respingada de sangue.
- Essa é a minha garota... Sorria, meu bem. Você conseguiu. Eu amo você.
- Ama?
- Claro que sim. Você sabe disso. Por isso ele foi embora. Ele estava deixando você doente. Você se sentirá bem melhor, você vai ver.
Clarisse foi de encontro ao espelho. Viu-se suja, morta, um farrapo do que havia sido.
- Você realmente me ama?
- Sim.
- Morreria por mim?
- Claro.
- Ficaria miserável se eu partisse?
- Irremediavelmente miserável.
- Vai me amar e ficar comigo para sempre?
- Para sempre.
- Então viva com isso para sempre.
Clarisse acertou  a própria cabeça, deixando vestígios de vermelho por toda parte - resto de batom no rosto e resto de vida nas paredes.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Poor Elise

Primeiro, bateu a porta do carro. Sem olhar para trás, Elise bateu a porta de casa. Deixou tudo do lado de fora. Juntou seus julgamentos, preconceitos e conservadorismos e preferiu ficar só - ela, os livros e seus julgamentos tortos.
Que se fodessem os ideais: no fundo, eram todos iguais.
Pobre Elise, o que será dela?

madrugada

Ele adorava a sujeira daquele relacionamento.

Enquanto os homens comuns idealizavam suas companheiras como mulheres angelicais e comportadas - pois as indecentes serviriam-lhes apenas como amantes - ele havia idealizado algo diferente, e descoberto que ainda não tinha conseguido imaginar todas as possibilidades. Acreditava que alguma força divina - ou não - a pusera em seu caminho. E descobriu, então, que seu ideal de companheira era diferente, era algo que pairava entre delicadeza e sujeira, inferno e paraíso. Porque ela fazia-se puta quando queria seduzi-lo, era indecente até a última fibra de seu corpo, tinha a língua e o sexo em fogo.

Entraram às duas da manhã na sala reservada do Terminal Rodoviário. Um senhor cochilava perto da máquina de café. A meia luz e o silêncio da saleta eram um convite ao sono àquela hora. Sentaram-se de frente à tela que exibia um filme antigo qualquer. Sentiu-se entediada. Abriu uma revista e passou rapidamente as páginas. Ele abriu um livro que ela havia comprado para ele dias antes - mais um livro de poesias eróticas. Ela sabia exatamente como excitá-lo. Olhou para ele sorrindo de lado, vendo seu interesse na leitura. Buscou então a mão que não segurava o livro e levou à boca, introduzindo o polegar entre os lábios e acarinhando a ponta do dedo com a língua quente. Ele fechou os olhos - como sempre fazia quando algo o excitava - e olhou em seguida para o homem que dormia. Seu sono era profundo e sonoro. A mão dela escorregou para o meio das pernas dele, sentindo o quanto ele gostava da situação - seu rosto tornava-se grave, olhos fechados, como em uma espécie de transe. Ela parou, então, sorrindo mais uma vez, desafiadora. E os olhos dele faiscaram, significando que não havia mais como voltar atrás.

A bagagem de mão foi colocada estrategicamente em seu colo. Sentia o sexo queimando e molhando o meio das coxas que se apertavam cada vez que ele pulsava em sua mão. As luzes da sala e da plataforma começaram a piscar intermitentemente, anunciando algum problema elétrico. O movimento dos funcionários na plataforma os excitava ainda mais. E valendo-se da luz que falhava, ele buscou tocá-la para provocá-la ainda mais. E a luz apagou-se definitivamente.

Imediatamente ela se levantou, tateando o caminho para o pequeno toalete da sala reservada. Sem hesitar, ele pôs-se de pé, seguindo-a no escuro. Fecharam a porta e se apertaram no pequeno lavabo, feito loucos em silêncio. Com a saia levantada, foi suspensa e prensada contra a parede, sentindo o desespero rijo de encontro à sua virilha. Ela beijou-lhe a boca, sacana, mordendo os lábios e lambendo o outro rosto, exatamente do jeito que o alucinava. De repente, acertou-lhe o rosto com um tapa. Não conseguia ver os olhos dele, que provavelmente estariam brilhando. Sentiu apenas uma mão apertando-lhe o pescoço enquanto seu sexo era invadido de uma vez só com um pequeno rosnar. Estavam, então, como queriam. Ele lançava-se para dentro dela com violência, pressionando os dedos em volta do pescoço branco e subindo em direção aos cabelos, que agarrava com força, forçando o corpo dela para baixo, de modo que engolisse inteiro o seu sexo que pulsava desesperadamente. Fodiam feito cães, desesperados de amor. Enquanto batia sua virilha contra a dela cada vez mais rápido, o corpo suspenso estremeceu e amoleceu, fazendo com que ele sentisse uma onda quente envolver sua porção latejante e molhar suas pernas. E com o pulsar acelerado, deixou que o corpo dela escorregasse ao chão e ordenou: "Engole."

A boca macia o envolveu tão intensamente que mal pôde conter que a explosão vazasse da boca ao seio que fugia da blusa, palpitante e suado.

As luzes acenderam-se, cúmplices. No toalete, cheiro de sexo e vestígios molhados de amor pelo chão.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Manhãs


Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro
.
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
.
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
.
Ela me beijava o membro
.
Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte
.
Morte e primavera em rama
disputavam-se na água clara
água que dobrava a sede
.
Ela me beijava o membro
.
Tudo que eu tivera sido
quanto me fora defeso
já não formava sentido
.
Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama
.
Ela a me beijar o membro
.
Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas
.
Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha
.
tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
.
como beijava uma santa
no mais divino tranporte
e num solene arrepio
.
beijava beijava o membro
.
Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo
.
Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta
.
Ela me beijava o membro
.
O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar
.
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longíquo
e uma cidade se erguia
.
radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
.
Para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
.
e me tornava disperso
todo em círculos concentrícos
na fumaça do universo
.
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em setembro.
.
Carlos Drummond de Andrade
.
.
Era primeira noite de janeiro
e
ela me beijava inteiro
.

pessoas na praia cantavam
coros embriagados celebravam
ela me beijava o membro
.
O meu tempo perdido
o meu tempo ainda futuro
cruzados em um só rumo
.
Ela me beijava o membro
.
Uma esfinge cantava
bem dentro do peito
dentro, do coração, de mim, da morte
.
Vida e morte em trama
regados em nossas almas
água que aumenta a sede
.
Ela me beijava o membro
.
Tudo que eu tivera sido
quando eu ainda não era inteiro
não formava sentido
.
Somente a rosa crispada
e eu beija-flor ardente em chama
o êxtase na cama
.
Eu a beijá-la por dentro
.
Dos beijos era o mais íntimo
Beijava, beijava com sentimento
.
Pensando nos outros homens
eu os odiava e tinha pena de todos
sombras e testemunhas de tudo
.
Meu império se estendia
por toda a cidade deserta
deuses em uma ilha
.
Ela me beijava o membro
.
O prazer de viver
o mistério de amar
o encontro amoroso de gozar
.
Eram todos, ondas caladas
morrendo num caís distante
e algo se erguia
.
salvo da letargia
e de alma apaziguada
espasmos com o beijo da brisa
.
Furtando-me do sono
desfolhando-me o corpo
como um animal sua sede sacia
.
me tornava rijo
ao som do seu litígio
me perdia no universo
.
Beijava o membro beijava, e me matava beijando
.
.
José Rodolfo Klimek Depetris Machado

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Pablo Neruda

"Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando."


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

desconforto

Sinto-me literalmente estranha com essa água morna e parada que chega até os joelhos, como se o letárgico brejo tragasse, aos poucos, esse meu demônio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

em silêncio

Ele irrompeu sala adentro, como um tornado, e fez com que a porta impedisse que qualquer um entrasse naquele momento. Nada falou; beijou-lhe a boca como um selvagem e abriu as calças, já buscando o caminho entre as pernas cobertas pelo vestido.
Ouviam os outros trabalhadores passando pelo corredor, abrindo a porta ao lado e narrando assuntos que autoafirmavam seus postos de macho - sua virilidade.
Lambiam-se ofegantes, línguas desesperadas e sexos famintos por uma foda rápida e intensa, engolindo seus gemidos com saliva e arfares mudos. Ele encontrou um sexo que tremeu à primeira investida. Sorriu. Uma música abafava o som dos beijos e as batidas da mesa contra a parede, ao ritmo da batida de um corpo contra o outro.
As mãos grandes seguravam-lhe pelo quadril, indo e vindo forte e fundo, causando-lhe uma dor que se misturava com um quase orgasmo cadenciado, crescente, transbordante.
E enquanto ela quase morria com ele se desfazendo entre suas coxas, barbaridades eram rosnadas entre dentes... até que a pequena morte fizesse fluir o que ainda restava de suas almas.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Mais uma dose

Mais uma dose. Ele tossia compulsivamente enquanto ela gargalhava no canto urinado do quarto imundo. Aqueles olhos que reviravam eram lindos e menos brilhantes naquele momento. Olhos de cor estranha, não sabia se pela sua vertigem ou se pela loucura passageira que a assolava. Era linda quando estava louca, quando estava alta, quando estava bicho.
Arrastou-se para o seu lado e passou o braço em volta dos seus ombros, buscando algo de consolo e calor. Tudo era frio e cinza e aquela gargalhada era a única chama a aquecer o seu mundo. Mas ela parou. Olhou para ele e o mandou para o inferno. Afastou-se. Começou a gargalhar novamente.
Com a boca seca, ele se dirigiu novamente para perto dela, mas ela novamente o hostilizou, vomitando agruras e estranheza. Mostrou-lhe, então, a agulha. Ela sorriu apática, estendendo-lhe o braço. A euforia injetável pulsou forte na veia, espalhando-se em espasmo elétrico por todo o corpo, até o espumar da boca.
Ela era tão linda quando estava morta...

O gato

Ela se lavou até sentir a pele arder embaixo d'água. A visita dele sempre a perturbava ao pé da escada.

Chegava no meio da noite, sorrateiro feito um gato, e acertava sua janela com aquelas malditas pedrinhas que tilintavam aqui e ali e a despertavam de um quase sono, de um quase sonho. Então descia trôpega e descabelada, enrolada em uma camisa qualquer, vestida apenas de pele e pelos por baixo. Beijavam-se como se tivessem acabado de conversar, como se ele sempre tivesse estado ali. E a colocava de rosto grudado na parede para balbuciar desejos inconfessáveis e amores reprimidos. Rasgava sua carne e lambia seus ouvidos. E a amava por vinte minutos e partia novamente. Simplesmente partia.

Ela voltava e esfregava o corpo embaixo d'água para fazer o amor diluir e escorrer ralo abaixo.

A visita dele sempre a perturbava ao pé da escada.