EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 28 de junho de 2008

drops

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Senti raiva do mundo. Raiva de mim. Raiva dos outros.
Senti na boca um gosto amargo que fazia ameaças insistentes.
Peguei a chave do carro, saí, bati a porta de casa, atravessei a rua correndo, deixei o mundo pra trás. Lembrei que não sabia dirigir. Fui embora.
Sentei à beira do mar e chorei; chorei pra colocar aquela porção má de mim pra fora, pra derramar o que eu não queria mais, pra liquefazer a dor.
Mas a lembrança viva olhou pra mim e sorriu. E falou. E despediu-se com um beijo de boa noite e um aceno. Longe, bem longe de mim...
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(se eu rearranjasse, poderia ser um poeminha... ou não...)
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segunda-feira, 23 de junho de 2008

diário de salomé (o confessionário)...

Apesar do meu ofício, nada impede que tenha minhas crenças, que acredite na redenção e no perdão divino.
Lembro-me bem: era terça-feira. Precisava fugir das carolas que freqüentavam a igreja aos domingos e segundas-feiras. Repudiavam abertamente a minha figura, sempre muito bem vestida e com um ar deveras respeitável (quem disse que prostitutas são criaturas amorais ou imorais, enganara-se). Muitas vezes, em tom provocativo, ostentava jóias que recebera por meus préstimos pessoais aos velhos coronéis ou mesmo por gentis cavalheiros galanteadores que, esperançosos, tinham a bela pretensão de me tirar do meretrício e dar-me uma vida "decente", onde passaria a ser esposa e mãe. Na maioria das vezes, as jóias eram presentes dos maridos daquelas senhoras capazes de me apedrejar, se isso lhes fosse permitido. Bem sei, na plena execução de minha profissão, o que acontece a decentes esposas e mães...
Tinha um bom trato com meu confessor, um padre que me acolheu muito bem naquela paróquia desde que cheguei à cidade. Por muitos anos, acompanhei minha "mãe" (a saudosa senhora que me abrigou em seu prostíbulo ainda na fresca adolescência) à igreja, no mesmo dia da semana, para livrar-se (das mesmas) carolas. E ela confessava seus pecados, de coração, pois assim como eu, também acreditava na remissão dos erros.
Naquela noite, meu velho padre caiu doente, impossibilitado de ouvir minha confissão e dar-me penitência. Mas sabia que precisava, mais do que qualquer outro, do perdão divino. Por isso, mandou o novo sacerdote atender-me. O havia visto duas ou três vezes pelas ruas da cidade. O jovem franciscano tinha um ar inocente e, ao mesmo tempo, viril. Sempre fantasiei profanar o templo sagrado, mas isso juntava culpa ao meu desejo. Além do mais, o velho padre era como um pai para mim, o pai que não tive, pois aquele que abusou da minha fragilidade infantil eu via na figura dos velhos que babavam sobre o meu seio, depositando o sêmen escasso dentro de mim. Mas o jovem sacerdote reavivou o desejo imundo que eu escondia.
Comecei a relatar minhas contravenções bacantes, pormenorizando - propositalmente - os atos mais sujos, inclusive aqueles pelos quais já obtivera perdão, pois já haviam sido confessados e devidamente penitenciados. E fazia perguntas ao jovem franciscano, cuja voz tremia, talvez pela inexperiência, talvez pelo desejo que meus pecados provocavam nele.
Dentro do silêncio da velha igreja, ouvia-se apenas vinha voz, baixa, rouca, sussurrando obscenidades ao casto rapaz. E depois de um tempo, ouvia o roçar da mão dele sobre o tecido de sua veste, tentando acalmar o sexo que latejava contra sua vontade. E o meu molhava-se por baixo do vestido longo que usava (por hábito) sem calcinha.
Àquela altura, a culpa já havia me abandonado, e meu demônio interior possuiu-me, fazendo levantar e ir de encontro ao jovem monge, indo para o outro lado da grade. Lá estava o franciscano, sentado, ruborizado e teso por baixo da veste pesada, apalpando-se. Prostrei-me de joelhos à sua frente, em posição devota.
- Por favor, irmã... não...
E antes que pudesse continuar, minhas mãos pequenas e macias levantaram cuidadosamente seu costume, indo de encontro ao sexo ansioso. Ele resistia, e, fraco, tentava impedir, delicadamente, que eu continuasse... até começar a magnificar seu membro com minha boca. Ele estava entregue.
Suas mãos - inábeis - buscavam apoio em algum lugar. Retorcia-se no banco, pedindo clemência a Deus pela imundície de seu ato, e pedia por nós dois. E quanto mais ele pedia, mais excitada eu ficava.
Enquanto o engolia, meus dedos desabotoaram o vestido para que ele pudesse ver meu corpo, tocar minha pele, desbravar meus seios. O sexo puro já pulsava em minha boca, anunciando o gozo, enquanto ele mordia as mangas da veste para não gritar de desespero.
Coloquei-me de pé a sua frente, obrigando-lhe a fitar meu corpo nu, conduzindo sua mão ao interior de minhas coxas. E quando os dedos descobriram a gruta quente e molhada, ele estremeceu, quase gozando somente ao toque. Gemi baixo, retirando sua mão e levando-a à sua boca. Instintivamente, ele abocanhou o dedo, sentindo o gosto que tem uma mulher.
Sem que pudéssemos mais resistir, fomos ao chão. Com o instinto animal que todo homem tem, colocou-se sobre mim, enterrando todo o desejo que sentia entre minhas pernas. E lambia-me o rosto, os cabelos, o pescoço, como um cão no cio.
E veio. Explodiu dentro de mim, depositando o líquido quente e glorioso de sua alma em meu ventre.
Chorou. Eu o acalentei em meu seio e disse que ficaria tudo bem. Ajoelhamo-nos e rezamos juntos, pedindo perdão pelo pecado que havíamos cometido ali, na casa do Senhor.
E meu jovem monge partiu na manhã seguinte, nunca mais retornando à pequena cidade.
Hoje brinco com meu querido amante, suplicando-lhe que seja meu pastor, meu monge, e que me castigue fervorosamente em nossa alcova, para lavar minha alma de todo o pecado que já cometi na vida...
Salomé

domingo, 22 de junho de 2008

o espelho...

(...)
A gota quente que escorria do canto do sorriso levou-me a buscar o espelho. Os olhos vermelhos combinavam com o rosto ruborizado, contrastando com o espesso líquido branco que descia dos lábios inchados e carmim. Um sorriso malicioso surgia no retiro de minha boca. E ele, ofegante, jazia entre os lençóis.
Desejava ardentemente que não houvesse o interminável (e merecido) descanso do guerreiro. Eu, animal selvagem fora do cativeiro, não tinha mais limites. Era escrava liberta dos amantes que tivera; puta dissidente da ordem natural das coisas; o avesso do avesso.
Olhava-me nos olhos borrados de pintura, castanhas e transparentes janelas da alma. Toquei o seio nu da outra mulher que observava - eu mesma - e os pêlos, quase inexistentes, molharam-se ainda mais.
Foi assim que ele, meu jovem amante, prostrou-se diante de nós duas - eu e meu reflexo - ardendo novamente, pulsando incontrolável aos pés da Eva de Michelangelo encarnada na figura da meretriz. Eu era, para ele, o princípio do mundo, a razão do pecado, a destruição e a salvação da humanidade, o sagrado e o profano dentro do mesmo templo - o meu corpo.
De joelhos, lambeu o reflexo do meu sexo no espelho, enquanto os dedos violavam a púbis, o meio das coxas, a carne que se dilacerava ao toque. Ele possuía as duas, que se retorciam frente a frente, gêmeas e rivais, disputando a atenção do mesmo homem. Por alguns instantes senti raiva daquela outra que tomava meu lugar. E ela copiava meus gestos, meu desejo, minha forma de amar. E os cachos vermelhos caíam da mesma forma sobre os ombros nus. Seria eu mesma?
Inclinei o quadril, esquivando-me dos dedos. Puxei meu amante pelos cabelos, para que se levantasse. Aquela posição submissa não era dele.
De pé, senti a força das mãos guiando-me de encontro ao meu reflexo. Encostou-me ali, de modo que minha boca beijasse meu outro eu, enquanto era currada por trás, feito cadela, quase sem poder respirar, lambendo os lábios naturalmente rosados da mulher do espelho.
Ah, o sofrimento gozoso...
Salomé
(extraído do diário da prostituta)

homenagem póstuma a uma íntima desconhecida...

Chorei ao ler Alma Welt. Há poucos dias descobri o corpo alvo pintado inúmeras vezes por Guilherme de Faria.
Há fragmentos de Alma em mim. Além de Nina, Marie, Genevieve, Juliette, Amèlie, Ninon, Isabeau, Clarice Lispector, Simone de Beauvoir, há a - até então - minha desconhecida, porém tão íntima, Alma Welt. E a poetisa afagou meu espírito com calor e inquietude, entorpecendo-me com fonemas em forma de sonetos. E agora carruagens, luas pálidas, sombras e aromas fazem mais sentido do que antes, na minha cega ignorância e inobservância.
Os sentidos retorceram-se do horror da ausência de quem não conheci - mas parece-me tão próxima - e os pés deixaram o chão, num sonho lúcido e cristalino, onde o ópio são os registros da íntima e palidamente irresitível Alma Welt.
Um agradecimento especial a Guilherme de Faria, o pintor, escritor e cordelista que me introduziu - aos prantos - a beleza de Alma.

sábado, 21 de junho de 2008

ontem e hoje...

Quando eu era menina, pensava muito no que seria quando crescesse. Sempre fui fervorosa amante da Língua Portuguesa, mas sonhava em ser grande artista. Desenhava bem, mas não gostava de pintar. Gostava de construir coisas - quando prestei o vestibular para Belas artes, optei por escultura.
Aos sete anos, fui trabalhar na tv e no teatro. Era desinibida diante de câmeras e platéias, bem mais desenvolta e subversiva do que hoje. Hoje prefiro a "quase-misantropia"...
Sempre falei demais, o que deixava minha mãe prestes a me dar um corretivo a qualquer instante. Mas falava sobre tudo, conversava com os adultos sobre o mundo, sobre a vida, sobre viagens. Nunca fui desrespeitosa com os mais velhos: isso, nunca! Apesar do clima liberal no que dizia respeito a falar abertamente sobre qualquer assunto, não falávamos palavrões nem levantávamos as vozes para contrariar ordens maternas ou paternas. Éramos crianças exemplarmente educadas.
Adorava ser o centro das atenções quando, na mesma época, a diretora da escola onde estudava (pública, diga-se de passagem) levava as visitas importantes (geralmente autoridades políticas) até a minha sala para apresentar-me como a melhor aluna da escola, entre outras qualidades (sim, eu era mesmo a melhor aluna de uma escola pública inteira). Talvez isso tenha me feito amadurecer precocemente, pois carregar o título era um fardo demasiado pesado, exigia responsabilidade e pompa que não eram compatíveis com uma criança de 7 anos.
Ainda aos 7 (em 1983), venci um concurso municipal (ou seria estadual?) de redação para crianças do antigo primário (atual ensino fundamental). Lembro-me que era um concurso de uma famosa marca de iogurtes (não, não farei merchandising) e que o prêmio foi um passeio no naufragado Bateau-Mouche pela Baía de Guanabara.
Depois dos 8 anos e com a mudança de escola, meu mundo perfeito ruiu: precisava sobreviver naquele outro lugar, onde a inocência já não existia. Era tudo diferente demais, duro demais. Menos sonho e mais amargura. As meninas namoravam muito cedo e eu apenas sonhava em ser artista, vestida da Emília de Monteiro Lobato, alheia ao mundo real.
Foi a partir dali que provei o mundo humano, totalmente avesso ao meu mundo onírico. Foi a partir dali que endureci, que me retraí, que passei a sentir vergonha, que desisti de ser artista.
Anos depois, entre Belas Artes e Desenho Industrial, optei pela segunda alternativa.
E hoje, entre a ciência e o mistério, fico com os dois, sorrindo mais calorosamente para o mistério. Porque "instinto, docura e ferocidades", a ciência (graças aos deuses) não consegue desvendar.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

não sei quantas almas tenho...

(Imagem: O Pranto de Alma Welt, de Guilherme de Faria - http://pinturadeguilhermedefaria.blogspot.com/)

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa

terça-feira, 17 de junho de 2008

no subterrâneo da cama: o diário de Salomé...



Nos porões de nossas almas e corpos, satisfazíamo-nos. Entre as paredes escuras, sobre o carpete vermelho, não havia lugar para hipocrisia. O resto do mundo deixava de existir.

Depois de algumas noites, comecei a sentir desejos que desconhecia, estimulada pelos desejos que vinham do outro lado da cama. O semblante doce e paciente transformou-se em delicioso sadismo. Excitava-lhe a tortura, a provocação, a descoberta dos meus limites. O que era medo, transformou-se em gozo.

Apesar do grande estímulo que meu ar autoritário e experiente incitava - faz parte do ofício de mulheres como eu - ele, aos poucos, domou-me. Lentamente, notei a força que ele investia, sempre mais forte, mais fundo. Sem que eu notasse, ele me sodomizava, invadia onde eu nunca sonhara gostar. Alguns dos clientes que tivera me enojaram de tal forma, que passei a sentir asco por certas práticas. Com meu jovem amante era diferente: sentia-me inundar, pedindo, sem palavras, por mais. E então os dedos me curravam, machucando a carne por dentro, tocando onde o visível não alcança. Mas aquela dor não suprimia o prazer de sentí-lo meu. Me estimulava.

A dor era o pedágio para o prazer. Seduzi e maltratei velhos decrépitos e bêbados, donos de fortunas que encheriam os olhos de qualquer donzela. Mas eu já não era uma donzela, muito menos inocente. Duvidei - por toda a vida, até então - que houvesse amor no mundo. Falo do amor dito verdadeiro, o suicídio glorioso ao qual rendem-se os mais inocentes.

Descobri-me disposta a pagar os preços cobrados pelo meu doce agiota por todo o prazer que havia desconhecido durante todo o meretrício. E ele, surpreendendo-me, abriu meus olhos ao mundo verdadeiro, que corria paralelo ao que havia passado por mim até esses dias, mostrando-me a dimensão sacra do meu sexo.

A dor e o sofrimento faziam-me feliz, proporcionavam-me um prazer como homem algum antes desse pôde me fazer provar. Suplicava que me batesse e me amasse até a loucura, o que ele hesitava até que me desesperasse a ponto de chorar e cravar-lhe as unhas, gemendo alto e forte, quando ele finalmente se rendia à luxúria e me tomava com paixão.

E seguimos assim, com toda a falta de beatitude e pudor que nos assola. Eu, meretriz por mais que metade da vida, hoje posso dizer-me uma verdadeira puta: descobri, com a entrega de meu corpo profano, o sagrado amor.


Salomé



SONATA


Sonata
...baseado em fantasias reais...
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Prelúdio
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Ela, sem objeção alguma, sem perguntas, permitiu ser vendada por ele. E carinhosamente ele cobriu aqueles belos olhos rasgados com uma venda de seda negra. Os olhos que apenas em fitá-lo excitavam-lhe porque traduziam, sem a necessidade de palavras, quando ela estava molhada de tesão, esperando por ele. E que o olhavam pedindo por ele nas situações mais improváveis, o que o surpreendia e encantava. Ele encontrara a mulher perfeita, uma cadela de cio interminável que o satisfazia à exaustão. Rodaram pela noite fria, pelas ruas e avenidas labirínticas até ela perder o sentido de tempo e direção. Não perguntou nada durante o trajeto, obedientemente rebelde. Uma oportunidade dela para mostrar quem estava no controle. Seu silêncio o incomodaria mais; ela não vestia qualquer personagem para agradá-lo, porque o que ele mais gostava nela era seu tom desafiador, subversivo e indecente de ser. E ela gostava de se comportar assim, para ao mesmo tempo desafiá-lo a domá-la e para dizer que só ele era capaz disso. Enfim estacionaram. Silêncio absoluto. Nem parecia que ainda estavam na cidade. Não havia nada que pudesse denunciar sua localização ou o que ele pretendia. Sempre sendo conduzida pelas mãos, ela sentia o frio e a umidade da noite tocando sua pele, arrepiando os pêlos. Ele a encostou contra a parede e começou a acariciar seu sexo. Deveriam estar em algum beco, em algum canto escuro e esquecido. Beijava-a com sede enquanto seus dedos, por baixo do vestido que ela usava sem calcinha, a pedido dele, se escondiam dentro do calor do seu corpo. Suas intenções eram as piores possíveis e ela gostava disso. Excitava-se ao correr riscos. Ao sentir os dedos molharem, ele parou abruptamente; ela sabia que ele sorria aquele sorriso perverso. Ao menos ele permitiu a ela a oportunidade de experimentar a própria libido que começava a escorrer por entre as coxas. Ela não deixou por menos e, aceitando o convite para o jogo de sedução, lambeu languidamente os dedos dele, gemendo baixo. A língua viva e quente o incitava a deixá-la experimentar algo mais que seus dedos. Eles adoravam se provocar. Principalmente quando havia alguma chance de serem surpreendidos no meio das carícias. Mas não estavam ali para isso e ele não lhe daria esse gosto. Não ainda.
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O Teatro
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Saíram de onde estavam e entraram por uma pesada porta enferrujada fechada à corrente, que ele abriu com o cuidado de um invasor. Seguiram e de repente, uma breve pausa na caminhada ligeira; ele pediu a ela, sussurrando em seu ouvido, que o acompanhasse mais furtivamente dali em diante. Retirou o par de saltos dela e continuaram. Os pés sentiram o carpete macio.
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“Onde ele estaria me levando?”
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Abafado pelas paredes e passagens das coxias e camarins, uma música ganhava forma na melodia delicada que se insinuava à medida que eles se aproximavam, até que ela não sentiu mais a proximidade das paredes ao seu redor. A acústica do teatro reverberava cada nota tocada pelos dedos hábeis, distribuindo a sinfonia igualmente por todos os cantos. Ela imediatamente parou, hipnotizada. Ora cristalinos, ora graves, os sons compunham uma dança de luz e trevas que a entorpeceram. Ela poderia ficar ali, eternamente, embalada pela música do piano, sem ver, somente sendo alimentada pelos ouvidos, sem coragem de se aproximar, sem coragem de se afastar. Ele, que não contava com essa reação, a tirou do transe com um sacudir brusco. Por um instante, todo o trabalho que ele teve para satisfazê-la foi ameaçado por uma ação impensada. Não havia como disfarçar a raiva momentânea que se apoderou dela, por ele tê-la privado do êxtase que experimentava. E o ódio da ameaça de ter seu plano desfeito por uma armadilha da sensibilidade feminina, também o irritou, quase o cegando. Sem precisar de explicação, como verdadeiros cúmplices, ele não precisou dizer que não poderiam discutir ou denunciar sua presença: eram intrusos e não podiam ser expostos. Porém ele sabia como desfazer o embaraço, e com um beijo profundo e longo, resgatou a verdade deles, de estarem juntos, da paixão que os transformava em animais. Ela tremia em seus braços, pois por mais que conhecesse seu homem, sabia que ele havia preparado algo realmente grande dessa vez, e a expectativa a deixava nervosa e ansiosa. A espontaneidade inata dele, escondia sua capacidade maquiavélica de planejar. Aliando seu comportamento com sua ousadia, podia-se dizer que ele era capaz de tudo.
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O Pianista
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Salvos de si mesmos, ele a conduziu por entre as sombras das poltronas da platéia, ela sempre vendada, a luz opaca mais próxima. O piano soava mais perto, capaz de dominar tanto quanto a flauta de um encantador de serpentes. Quando estavam ao lado do palco, somente um holofote de luz baixa iluminava o homem de óculos escuros e fraque. Os dedos interromperam o balé sobre o marfim e o ônix. A respiração ficou suspensa. O pianista suspirou, como se recobrasse as forças para concluir uma tarefa incômoda e penosa, afugentando fantasmas. Apagou o cigarro no cinzeiro de prata acima do piano e acendeu outro. Tateou com a mão direita ao lado de sua banqueta, procurando uma garrafa de vinho tinto já pela metade e se serviu dele. A música voltou a falar por ele. Por um segundo, ela pensou que seriam pegos, que finalmente a brincadeira de se exibir iria deixar de ser divertida para tornar-se um pesadelo. Ela, então, entendeu de uma só vez o que ele pretendia. Na intimidade da cama, certa vez confessou que tinha a fantasia de ser currada sobre um piano, ao som de alguma bela sonata, para convulsionar de orgasmo no ápice da composição, tendo os gritos abafados por beijos esfomeados, que mastigam os lábios e misturam o sangue à saliva. Entretanto, ela nunca imaginou que pudesse realizar esse sonho. Revelou o segredo porque sabia que isso o excitaria. Seu fetiche com o piano de cauda devia-se a seu primeiro namorado e primeiro homem, que tocava piano e que com ela estreou o gozo. Toda fantasia corre o risco de deixar de ser lírica, ao passar do onírico ao real. A tragédia de qualquer utopia. Quanto mais as sexuais.
Aquele medo contemplativo de antes, retornou mais profundo e sólido, misturado com uma sensação absurda de prazer que a tomou sem pedir permissão. Ela percebeu que não havia como voltar atrás. Estavam a ponto de tentar a maior ousadia que já foram capazes; todos têm limites e os de ambos seriam testados aquela noite. O que sobrasse após, estava fadado a ser sublime ou uma ruína. E sem alternativa, ela se entregou aos instintos, em febre, calando a razão e o medo.
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Interlúdio
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Ele deu-lhe a mão para ela beijar e os dedos para sugar, para calá-la, para silenciar os murmúrios de sofrimento da tortura que ele estava prestes a aplicar. Ele a deitou e mergulhou o rosto nas pernas trêmulas, sua língua a abrir caminho pelas pétalas rubras, em fogo. Ela sempre se molhava facilmente, assim como bastava um olhar ou mesmo uma brisa que convidasse os cachos vermelhos dela para dançar, para fazê-lo perder a cabeça. Porém, os dois estavam perplexos de como a situação os estimulava. Um dedo, procurando o calor e a umidade para acariciá-la onde ela era mais sensível, dois, três dedos e a língua, todos a serviço da mais cruel das torturas. Ela cravava os dentes na mão dele, para afogar os soluços que brotavam do seu ventre e respondiam pela garganta se espalhando pelo corpo inteiro, implorando pelo outro corpo para alimentar a sua necessidade de sexo. As unhas afiadas, aceradas e vermelhas como seus cabelos, seguravam firmes os cabelos dele; uma forma de tentar retribuir e controlar o tesão, o gozo, o orgasmo. Tantos tentaram fazê-la gozar sem invadi-la, sem sucesso, impacientes amantes que apenas queriam foder e voltar sozinhos para casa, mais leves. Até ele se arriscar. Sem pressa, ele descobriu onde e como ela gostava mais, e ao invés de se impacientar com a escalada da progressão do orgasmo, ele se excitava exatamente com a demora. Com o poder de torturá-la longamente, prolongando o quanto pudesse o tempo que ela precisava para o rio de fogo que escorria por suas pernas abrir-se e inundar sua boca, seu rosto, sua barba. O cheiro do sexo excitado, vermelho e ferido pela barba, era uma fragrância afrodisíaca que os enlouquecia. Entretanto, como não teriam tempo para se devorar pela noite adentro, ele a deixou a beira do precipício de aniquilação e parou. Ela, espumante, pedia clemência, seu rosto contorcido como uma viciada que rasteja por mais um pouco de sua droga. Ela avançou em um bote rápido procurando livrar a roupa que separava o membro dele de boca dela. Ele não poderia se defender do beijo, paraíso osculante que só ela sabia dar. Por isso antes que ela alcançasse o que desejava, ele segurou suas mãos com força e a ajudou a levantar-se dizendo no fundo do seu ouvido:
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“_A gente só termina isso se for no piano, como você disse que queria.”
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Ao Piano
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Acobertados pela música que crescia em sua magnitude e potência, puderam, ele e ela, subir os degraus e se aproximarem no escuro até o piano e seu pianista. E ela se viu livre subitamente de sua venda e entre a luz e a escuridão, contemplou a figura solitária sentada à frente do piano de cauda negro e lustroso. Seu rosto era o de alguém que sofre em silêncio, angustiado, sutil e sereno. Como quem espera algo especial que o distraia de seu próprio enfado do talento, degustando alguma ferida antiga. Não se podia ler em sua expressão nenhum resquício que revelasse o que se passava em seus pensamentos, um enigma. As janelas de sua alma estavam hermeticamente fechadas. O cabelo desalinhado contrastava com a bela indumentária; o vaidoso músico, mesmo ensaiando sozinho no teatro antigo em reforma, gostava de ostentar boa aparência. E os ignorava, cego. Ela percebeu a ardilosa artimanha do seu homem para conseguir realizar a sua fantasia. Ele havia se superado, sem sombra de dúvida. Ele a beijou e a colocou inclinada na borda da cauda do piano e levantou o seu vestido. Suas mãos firmes agarraram seu quadril, fazendo com que ficasse totalmente empinada. Gostava de vê-la sem o olhar pernicioso de quem está no controle da situação. Ela, sem emitir som, pronunciou para ele ler em seus lábios o pedido:
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“_Me fode...”
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Ele lhe deu um tapa no rosto, de leve, e fez da venda uma mordaça para ela. Entrou com gosto, fundo, dentro dela, que gemeu de satisfação. Mesmo com a mordaça, um vestígio de gemido escapou e se misturou à música. Como era belo o seu rosto ao ser comida: em seu semblante mil mulheres se mostravam. Desde a puta que gostava de levar tapas e provocar, à menina-mulher que sofria, como sofreu desde o primeiro instante com o pianista, de prazer. Nenhum homem ficaria imune à visão dela, fêmea bela e profana, sofrendo a delícia indecente de se mostrar e amar, em conluio corajoso e sem-vergonha. Sem culpa de ser boa.
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Revelação
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Quando a cavalgada se encaminhava para o fim que toda cavalgada como aquela termina, de orgasmo, júbilo e derrota, ele vacilou. Afastou-se, como se tivesse asco, como se não suportasse mais. Ela não entendeu, até mirar o pianista. A música, que no calor dos movimentos ela não reparava mais, estava mais simples, ainda extremamente bela, mas sua composição havia se tornado tão minimalista que só se o músico estivesse tocando com uma mão apenas ele conseguiria aquele efeito. E seu rosto, retraído, como quem sofre de uma angústia enorme, respondeu o porquê seu homem hesitara: a sua armadilha lhe enganara, o pianista não era cego. Ela percebeu no rosto do seu amante que ele sabia e que firmara um acordo para colocá-la naquela situação para realizar sua fantasia, para vencer esse desafio e chegar ao limite do exibicionismo. Ela jamais aceitaria se ele tivesse proposto antes que se mostrarem para um voyeur, pensava ele. Então, ele tentou realizar a fantasia dele, sob o pretexto de realizar a dela, e agora que havia ultrapassado o limite, via que não seria capaz de realizar seus intentos. Qual não foi a decepção dele ao perceber que ainda havia convenções em seu coração até então despudorado. Convenção não, ciúme. O pianista, por sua vez, também foi surpreendido. O que ele queria era estar ali e ser completamente ignorado. Esse era o trato: deveria enredá-los em sua música sem interromper ou se intrometer. Assistiria a sua música personificada na paixão do casal à sua frente. Testemunhar, esse era o seu papel a que tinha direito. Nem mais nem menos. Mas resistir àquela mulher era impossível. O namorado desviou o olhar, não podendo encarar a própria mulher. O pianista fez menção de fugir. E ela, brasa ardente, sedenta e esfomeada, provocantemente provocada, indecentemente deliciosa, ainda esperava para ser satisfeita. Ela estava tomada por uma súcubo que queria ser possuída à exaustão. Sentia-se traída e irada pela desconfiança e por ter sido subestimada pelo próprio companheiro. Mal sabia ele que ela era mais desavergonhada do que ele sequer poderia imaginar. E ela faria com que ele aprendesse isso, da pior forma possível.
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Vingança
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Servir a dois homens, para a mulher, é ser escrava erótica. Diferentemente da supremacia da fantasia masculina de ter duas mulheres para satisfazê-los. O anseio de quebrar todas as correntes e afogar aqueles dois homens no fundo do poço, que em segredo a enganaram para satisfazer suas taras secretas, era maior do que o seu amor-próprio. Levada pelo instinto de vingança de mulher magoada, ela deu início ao ménage à trois. Sem permitir que o pianista fugisse, o hipnotizando com os seus olhos de feitiço serpentário, da mesma forma que a música a hipnotizara, ela se aproximou dele, apagou o cigarro e o beijou longamente, dando-lhe um banho de saliva. Ajoelhou-se a sua frente, bebeu o resto do vinho para não hesitar e fervorosa em sua prece, engoliu o pianista que, desacreditado, experimentava o desgosto de estar em uma situação que ele não esperava e não queria, e a surpresa de estar adorando isso.
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“_Vladimir, meu nome é Vladimir...”
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Ela não se conteve ao ver aquele sacana tão vulnerável, ela não perguntara nem queria saber o nome dele. Eles nunca teriam intimidade, esperava nunca mais vê-lo depois de terminar o que precisava ser terminado. Talvez tenha sido o sorriso de vitória sedutora em dominar os dominadores, de puta mesmo, que ela fazia nessas situações. O que importa é que, subitamente, ao ver aquela cena, o namorado que deveria achá-la grotesca, excitou-se de forma bizarra. Descobriu-se mais excitado do que outrora, o que parecia impossível. Lembrou-se de onde foi buscar o comparsa, o tarado para realizar seu exibicionismo imbecil; dos comentários doentios de seus amigos ao indicarem-no; de todo o trabalho e espera para poder ser visto fodendo a sua linda mulher, despertando desejo de um desconhecido. A sensação infantil de fazer com a sua mulher o que outro nunca poderia, de jogar na cara do desconhecido o quanto se amavam e como trepavam gostoso. Sentiu nojo de si mesmo, e masturbando-se, aproximou-se mendigando atenção à própria mulher. Ao ver o namorado derrotado, vencido e humilhado pelo desejo que com certeza ele execrava estar sentindo, ela sentiu-se vingada, embora o seu sucesso tivesse um terrível amargor. Sádica, libertou Vladimir de seu beijo para sentar em seu colo, sentindo-o enterrando-se ao máximo em seu corpo. Pegou suas mãos e as colocou em seu quadril para agarrá-la firme e forte, como o seu namorado gostava de fazer. Vestiu a máscara dominadora, embora quisesse mesmo era chorar. Os três estavam excitados e frustrados, porque haviam perdido o controle e sabiam que assim que acabassem e o frenesi terminasse, se sentiriam culpados por só terem gozado pela necessidade de se humilharem mutuamente. Rebolando em cima do pianista e chupando o namorado, eles ficaram, gemendo, se envenenando, sem coragem de sequer trocar um só olhar. Reféns dos seus corpos, até todos, ao ritmo que ela comandava, se destruírem no maior orgasmo de suas vidas.
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Último Ato
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Quais as palavras para se dizer quando se cai do paraíso para as profundezas do inferno? O pianista se encostou ao piano, com os cotovelos sobre as teclas provocando um barulho quase insuportável. O silêncio quebrado, todavia, era ainda mais insuportável. Ela se limpou rapidamente e sem dizer uma palavra, apenas com um único olhar de adeus para o seu homem, que não era mais seu, despediu-se e foi correndo para fora, lembrando de como chegara até ali. Assim que alcançou a rua, pegou um táxi e voltou para o seu apartamento, chorando copiosamente. O namorado, sem ter coragem para impedi-la, vestiu-se e, deixado a sós com Vladimir, sentiu toda a culpa, raiva, nojo, vergonha, remorso e ódio personificados naquela figura patética que precisava da paixão alheia para conspurcá-la e desse modo, satisfazer-se. Vendo a reação do homem à sua frente, Vladimir ainda tentou se explicar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, o outro pegou a garrafa de vinho e a arrebentou contra a sua cabeça e, sem defesa, desmaiou esvaindo-se em sangue. Com as pontas afiadas da garrafa quebrada, perfurou várias vezes Vladimir, como que se com cada punhalada, ele pudesse ferir um inimigo que na verdade era ele próprio. Passado o instante de fúria, sem saber o que fazer, vendo as manchas de porra no maldito piano, abriu-o e jogou o seu pianista para o útero de seu instrumento. Seriam um na morte; orgulhou-se da poesia que estava para realizar, fazendo do piano o esquife para o pianista. Empurrou o piano que caiu do palco com a sua tampa da caixa acústica selada contra o chão. Com o isqueiro de Vladimir, acendeu a pira que consumiria o instrumento e seu mestre, desaparecendo nas ruas com o seu carro logo em seguida.
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Ela chegou em casa, nauseada. Despiu-se com nojo do corpo e tomou um banho demorado. Dormiu na banheira, parcialmente imersa na água quente, quando as lágrimas secaram. Acordou no meio da noite, com ânsia, vomitando. Pesadelos acordados e sonhando.
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Ele saiu com o carro, no meio da chuva que começou a cair e entre tentar ligar para o telefone do apartamento dela que ela deixara fora do gancho, do celular, e dirigir, atingiu em cheio o concreto do viaduto caindo com o automóvel de ponta-cabeça na rua abaixo. Preso pelo cinto, desacordado, não conseguiu sair a tempo do meio das ferragens, sendo carbonizado vivo.
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O incêndio criminoso que cremou o pianista vivo foi vencido pela tempestade, sem maiores danos ao teatro. Três meses depois, a orquestra da cidade fez uma bela apresentação com o repertório do músico, em homenagem.
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POSTADO POR E AGORA JOSÉ?

domingo, 15 de junho de 2008

um outro final...

A ser postado em breve.

(in)verso


O amor (in)conseqüente
verte em verbo a língua
Vulva e falo insistentes
Aniquilados de gozo, à míngua

Claridade e escuridão
sentidos, palavras e signos
Osculante e maldita condição
Do oral silencioso e (in)digno

(Des)cuidado e ágil (des)amor,
(des)atento ao prazer que se apresenta
Arde a língua em profano louvor

Do gozo iminente e perverso
e a boca a alma alimenta
de orgasmo e sentido(in)verso.


sábado, 14 de junho de 2008

a pequena felicidade...

Havia um tanto de solidão no silêncio. Mas, às vezes, o barulho dos copos e vozes era vazio e oco como a solidão em si. E na imensidão do azul-laranja, os olhos enchiam-se da água salgada da baía, e as recordações vinham ondulantes, bailarinas petulantes e exibidas aos olhos dos saudosos.
E a memória dos dias felizes desnudava a saudade qual fruta ou doce descascado, reavivando os momentos que haviam passado e permaneceriam, sempre, na pele. E a alma, marcada a fogo pelo outro ser - inteiro - instituía o amor.
O sol do ser ardia a carne e fazia sombra ao imaterial. Era tudo completo e fragmentado, certo e duvidoso: a controvérsia do ser na autoridade do estar. Alegria e cansaço vistos da janela em manhã de domingo. Os filhos que não nasceriam e os que já gritavam em torno da rede. O amor menor.
A dor da partida que coagulava o sangue... a emoção do retorno - mesmo que breve - que aplacava os soluços infantis dos amantes: o brilho vivificado nos olhos com a certeza de um novo recomeço a cada dia.
E a beleza? Esta permaneceria intacta, sempre.
Postado por Nina

quarta-feira, 11 de junho de 2008

digressões inconseqüentes sobre o dia dos namorados...

Namorado é quem também não pode, mas quer e demonstra: disfarçado-disfaçando.
Namorado é quem se encontra em cada reconciliação sabendo renascer e reviver dentro da mesma relação.
Namorado é quem acaba compreendendo porque está junto. Mesmo que pese, mesmo que doa. Mesmo que venha sendo ou tenha sido difícil.
Namorado é quem redescobre as emoções de quando namorou e as traduz num olhar diferente ou numa emoção que já não dá pra contar.
Namorado é quem provoca a outra parte como forma de se aproximar dela. É quem fere e arranha para depois beijar.
Namorado é quem suspira e se lembra como era e do que sentia no dia daquela fotografia vista anos depois.
Namorado é aquele que, mesmo incômodo quando presente, faz inexplicável falta quando ausente.
Namorado é o que fez da impossibilidade o alimento para mais amor guardado; e do amor guardado o abastecimento para o amor exercido. E do amor exercido a provisão para a estação da saudade.
Namorado é o que reclama mesmo injustamente, mas para poder ser amado à sua maneira, muito mais e melhor.
Namorado é a viúva ou o viúvo levando flores ao túmulo, num dia qualquer em que a saudade chega, sem necessidade de data especial.
Namorado é quem levou um pedaço de vida que permaneceu durando mesmo sem ter existido, porque tudo acabou.
Namorado é o que seria se tivesse sido, mas durou, ainda que por instantes, na fantasia.
Namorado é o núcleo da recordação daquela namorada que não chegou a ser. Mas viveu na beleza infinita da impossibilidade fantasiada.
Namorado é o casal idoso feito amizade.
Namorado é o marido em cada vitória sobre o tédio conjugal; é o que pára e num momento de lucidez conclui que sem ela teria sido pior.
Namorado é um pedaço de possibilidade em forma de deslumbramento. É um clima, um estado especial, uma espécie de vertigem com gosto de chegada à lua, misturado com refresco de pitanga.
Namorado é o amor que está ao lado, o possível, o adivinhado, o portador das nossas melhores expectativas; a fôrma do nosso exato modelo; o cheiro e o gosto de pele das indefiníveis atrações vindas da infância.
Namorado não é quem assim se denomina, como se namorar fosse o começo de uma escala hierárquica que depois continua com noivado e casamento. Nada disso! Namorado é o noivo, o marido, o amante, o tímido desejoso, o fiel impossibilitado, o infiel aturdido, o frustrado, o reprimido, sempre que neles se riscar o fogo da vontade e se acender o clarão da sua verdade. Namorado é o ser humano em estado de amor, pouco importa os nomes dados a ele.
Namorado, portanto, é o eterno proibido, porque é sempre aquele que ainda vai conseguir. Mesmo de quem pode. Namorado é um estado de sentir antes de qualquer encontro e de todas as suas descobertas, mesmos as impossíveis; pouco importa se ocorre entre casados, solteiros, noivos, viúvos ou namorados mesmo.
Namorado é o que viveu o sempre-depois e o nunca-exercido, de um olhar que se cruzou dizendo e adivinhando um tudo que não precisou de constatação para ser vivido.
Namorado é o que sempre acaba voltando: em carne e osso, ou 30 anos depois, sentado no trono dourado da fantasia, lembrança, amargura, saudade doce, breve recordação ou vivência nunca morta.
Namorado é tudo o que representa o melhor de cada um de nós, distribuído em mil faixas de luz. São as luzes das partes que nunca alcançamos; são as luzes das vontades que nunca satisfizemos e nunca satisfaremos; são as luzes dos sentimentos que nunca envelheceram; são as luzes dos sonhos que nunca se apagaram, porque deles nutrimos a ânsia de viver, num mundo onde os namoros são a prova de que as pessoas estão ávidas no Encontro com o que são e gostariam de trocar.
Namorado: um espelho que reflete o outro, o morador desconhecido dentro de nós. Euele. Eleeu. Eutu – Tueu – Nós.


Artur da Távola
Postado por Nina
(Para o meu namorado, amante, parceiro, cúmplice, amor... Eu te amo.)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Depois da Barca, o Naufrágio Noturno nos Lençóis

Aqueles dias de felicidade infinita, quando a poesia, o sonho e o real se uniram para me trazer o paraíso na forma da companhia do amor, do desejo e da cumplicidade íntima, são inesquecíveis. Jamais deixarão de existir, e eu sei que haverá mais dias como aqueles, até o dia, em que todos sejam como foram aqueles dias. E esse dia, eu sinto, está mais perto do que podemos supor. Tão especiais como os dias de passeios de barca, sorvete, caminhadas de mãos dadas, abraços e beijos no ônibus, de declaração de amor através do anunciante da farmácia com o microfone, foram as nossas noites. Quando fugíamos do mundo, para povoarmos um ao outro, o mistério de se compartilhar a fome, a vontade, a aniquilação e o conforto do aconchego no corpo e na alma alheia. Depois de passearmos de barca, e insinuarmos com o sabor das ondas os movimentos um sobre o outro, no refúgio de um quarto de motel, tomamos banho. Lavávamos-nos com saliva. Assim como na primeira noite, só que dessa vez ela me acompanhou, abriu mão da comodidade de sua própria casa para ficar comigo debaixo do chuveiro. A cena da primeira noite dos três dias em que passamos juntos, ela de joelhos, com o vestido negro que eu quase rasguei, sem calcinha, me ensaboando e me engolindo, os cachos vermelhos, a boca pequena que me surpreendia ao afogar-se tão profundamente em mim não abandonara os meus pensamentos desde então. O convite para me servir dela, em cima da mesa, em frente ao espelho, onde ela se empinara e escolhera a posição para eu segurá-la por trás, assistindo o seu rosto de sofrimento gozoso a cada estocada funda, o nosso orgasmo quase simultâneo na cama, de um proporcionando ao outro o espetáculo de assistir o prazer indescritível que os dois se presenteavam. A nossa primeira noite daqueles dias, só de me lembrar, me excitava e agora que estávamos enfim novamente juntos, não consegui me conter e a coloquei contra as lajes frias do banheiro e ali mesmo, no pequeno espaço do box, eu a agarrei pelos ombros, entrando com força, ansioso, queimando, mesmo sob a água. E ela, era toda mar entre as pernas.
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Logo ela terminou o banho, e foi se secar na cama. Vestindo somente sua camisola de estimação, a mesma que na nossa verdadeira primeira vez, eu mastiguei para sentir o seu cheiro e o seu gosto; eu me lavava enquanto a via, de quatro, tentando arrumar o rádio. Saí atendendo uma ordem irrecusável da minha libido, e ainda molhado, a puxei para me encaixar dentro dela. Estava enlouquecido de tesão, e queria que ela sentisse a sensação de me ter rasgando o seu ventre, por dentro. À medida que a cavalgada se aproximava do seu êxtase, eu perdia o controle sobre a minha força, e sem medi-la, temia por seus cabelos úmidos ao me servirem de rédeas. Entretanto, ela pedia para não se preocupar, adorava ser currada forte, uma cadela de cio interminável e um lobo que uivava delirante para que a lua soubesse que seu filho acabara de amar a mulher da sua vida. Matamos momentaneamente a angústia-alegre de eternamente precisar do outro para ser feliz e dormimos abraçados, nus, entrelaçados. Eu a fazer cafuné nos cachos vermelhos e perfumados que na barca estavam presos em um coque. Ela a enrolar os dedos nos pêlos do meu peito. Eu a velando, assistindo a delicadeza de seu sono, sabia que ao meu lado jazia uma criatura divina. Musa, ninfa, anjo ou súcubo. Uma menina, uma mulher, a minha mulher. O cansaço foi maior e acabei cedendo.
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E no meio da noite, como Lázaro, ressuscitei. As mãos, os dedos, quase inconscientemente procuraram o lugar mais quente para se esconder. Sem pressa encontraram entre suas curvas, as pétalas da rosa e sem acordá-la, começaram a massagear a pele sensível que se molhava. Só despertou quando abri suas pernas para poder mergulhar mais, e ela sorrindo se arrumou para facilitar as carícias. Beijos que cresceram até tomar outra forma, sua boca veio para me retribuir o seu acordar e dessa vez, com ela por cima, sua vez de ser amazona, nos desfizemos nos lençóis. Dormimos, exaustos. Acordamos pela manhã, com o rádio que permanecera ligado. Ela não teve tempo de descobrir como ele funcionava, eu não deixei. Aninhados nos braços um do outro, fomos homem e mulher, namorados a confessar olhando nos olhos brilhantes que fazíamo-nos felizes e que queríamos viver um com o outro. Pelo resto da vida. As noites só começaram, e foi um belíssimo, delicioso e indecente começo.
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POSTADO POR E AGORA JOSÉ?

segunda-feira, 2 de junho de 2008

a barca...

Aqueles dias amanheciam invariavelmente bonitos. Havia sol, sempre. E o calor dos dias de primavera em pleno outono.
O tempo corria contrário ao desejo de que parasse enquanto estivessem juntos. Enlaçaram os dedos e observaram em silêncio a barca aproximar-se. O fim de tarde parecia querer colorir o céu de lilás.
Enquanto a embarcação preparava-se para receber os passageiros, ele observava a nuca da mulher à mostra, os cabelos presos no alto da cabeça num coque. Ela usava um vestido que mais parecia um roupão oriental, de tecido fino e florido. Parecia uma gueixa.
Os pensamentos instigaram os sentidos e trouxeram lembranças de um passado recente, de quando se encontraram pela primeira vez. Havia aprendido a treinar a memória dos sentidos, recordando gosto, cheiro, a sensação nos dedos ao fazê-la gozar. Ainda podia sentir o primeiro beijo, a pequena boca ao primeiro toque.
Seus pensamentos foram interrompidos pela pequena mão o puxando, conduzindo ao interior da embarcação que já havia atracado.
Ela parou diante de uma grade, de onde poderiam observar o mar durante a travessia, sentindo o vento e o cheiro de maresia.
Ainda perturbado pelos pensamentos de alguns momentos antes, colocou-se por trás dela, beijando-lhe a nuca. Ela sorriu maliciosamente, sem tirar os olhos da água. Era o sorriso que sempre usava quando queria provocá-lo, o mesmo sorriso de puta que o fazia desejar dar-lhe pequenos tapas para puní-la por ser tão indecentemente desejável quando estava dentro dela. E ele não dava, pois sabia que ela continuaria sorrindo mais. Precisava que ela pedisse, que implorasse. E somente quando o gozo chegava, ele cedia à vontade dela, e urrava como louco ao vê-la sorrindo e gemendo e enlaçando as pernas em torno de sua cintura, enquanto o corpo tinha espasmos entorpecentes...
Encostou-se com mais força em seu corpo, pressionando contra a grade. Havia uma mecha de cabelo que bailava ao vento, enquanto ele gemia e arfava baixo com a boca quase dentro de seu ouvido. E ela sorria, sentindo que ele pulsava contra o tecido leve do vestido, na altura das ancas, quase esquecendo de onde estavam e que havia dezenas de espectadores. Lambeu o lóbulo branco da orelha que se insinuava entre os fios que se soltavam do alto da cabeça. Queria mordê-la, arrancar-lhe um pedaço, engolí-la. Queria comê-la inteira, ali, bem ali.
Foram os vinte minutos que serviram de preliminares para a noite que viria...


(continua...)





domingo, 1 de junho de 2008

sobre pedidos de casamento...

Passávamos pela Candelária de ônibus, quando apontei a igreja e comentei que as pessoas pagam verdadeira fortuna para casar ali. Foi quando o seguinte comentário me arrebatou: "Que legal. Então vamos casar aqui." Talvez não tenham sido exatamente essas as palavras, mas foi nesse sentido. Minha respiração ficou suspensa. Não comentei, temerosa de cometer alguma gafe, afinal, ele poderia estar apenas brincando. Era o mais provável. Não consigo imaginá-lo vestindo fraque ou o que quer que um noivo (palavra estranha) vista. Da mesma forma, seria impraticável tentar me convencer de vestir um "bolo de noiva", tendo em vista que os vestidos mais se assemelham com a enfeitada e pomposa sobremesa.
Casei-me uma vez, há dez ou onze anos. Quase onze. Não houve pedido, houve um acordo. Não foi romântico nem religioso, mas teve juiz. Era pra valer. Pelo menos eu pensava que sim. A vida - com uma grande participação nossa, claro - acabou levando cada um de nós a um caminho diferente. Era notável desde o início que a instituição casamento, naquele caso, já estava beirando a falência antes mesmo da estréia, abertura ou o que quer que valesse. Ponto final.
Hoje, alguns anos após a separação e muitos anos após aquela instituição cartorial (posso chamar assim?), deparo-me com o desejo de estar com uma certa pessoa todos os dias, com o desejo de casar meus desejos com os dele, com o desejo de dar boa noite todas as noites com beijos (algo em torno de quarenta e quatro, talvez).
Não, não quero outra instituição. Quero votos de amor, flores no cabelo, com ou sem testemunhas, na beira do rio ou num grande jardim (sim, eu gosto muito de flores). Talvez a informalidade nos conceda o que o papel anteriormente não conseguiu institucionalizar - o amor, enfim. Mas, intimamente, bem intimamente, confesso que não há nada mais romântico e bonito que um pedido de casamento.
Ah...