EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

da embriaguez de tuas madrugadas

das coisas que não sei é que me assombro
das visões cegas - pálpebras remendos
da canções que não danço em silêncio
dos arroubos por vir - das incontingências
dos começos arenosos, dos meios transparentes
dos fins repletos.
emudeço-me de palavras tardias
ou brevidades ou esquecimentos
que venham pelas portas dos fundos
- saídas -
e fecho em sombras o dia claro
de ventos desertos em chuva.
assombra-me a solidão das multidões
e os sorrisos tristes.
alegra-me a visão imaginária de flores em tuas paredes cruas
tua embriaguez exposta em letras infames
nas horas em que o mundo dorme
quando tu me espreitas entre estrelas de distância
e me dás nomes que não sabes se existem
no espaço remoto do meu corpo
na infinitude de nomes que sou
na infinitude de amores que és.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

"o quão estranhos e profundos são os desejos"

Penso constantemente em me refestelar em tuas escuridões. Há muita fome em cada palavra que cala teus pensamentos pornográficos e indizíveis, teus cantos cobertos de musgo e vergonha, teus desejos pavorosos que se libertam da castidade das palavras limpas e me encontram em comas lúcidos e esquinas do teu espelho - porque és minha imagem. Embriago tuas ideias quando te espelho semelhanças e te [re]descobres em mim, em cada palavra-encontro-vocálico. Traduzo teus quereres quando explicito os meus, quando descrevo tua ausência-presença, tua lonjura, tua forma de me amar mesmo sem me saber tua própria carne, tua bebedeira, tua bile. Estou em tua boca, em teus fervores por baixo da roupa, por baixo da pele, dentro dos ouvidos que inventam minha voz, minha rouquidão, meu gargalhar. Refestelo-me em tuas escuridões que são minhas, quando sou sangue e mato pausadamente tuas esperas e te faço sofrimentos e gozos imaginários intermitentes. Quero engolir o que tens a me dizer garganta adentro, com tua mão a me prender o fôlego e teus dentes a me travarem a língua. Refestelo-me em teu sexo quando toco o meu. Digo putarias e canalhices que ouves solitário na madrugada escura do teu quarto, com teu vinho e teus blues. Amo cada curva dos teus desejos estranhos, tua ausência, tua retidão, teu abismo. Desejo teu cansaço, tua raiva, tua insônia. Tu me intrigas e te devolvo enigmas. Pulverizo-me libido em cada sílaba que teus olhos me veem [imaginariamente] balbuciando.

sábado, 24 de novembro de 2012

Sabe, eu conheço esta mulher. Podes pensar que ela te salvará de tua miséria, de teus naufrágios e torturas pessoais, de tuas culpas, de tuas tempestades. Podes até esperar que seja ela a te puxar do fundo, do ralo, do inferno. Mas ela não quer te salvar de nada. O que ela quer é passear sorrindo no meio de teus escombros, passar os dedos sobre tuas cicatrizes, lamber teu sangue. Ela te quer despedaçado e imperfeito, porque as coisas certas e perfeitas são enfadonhas, causam náusea, não existem. São mentiras. O inferno é onde te deitas, e ela, meu caro, é o diabo.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

amares

Cada vez que me pergunto "o que é o amor, afinal?" penso que o amor não existe. Este amor, circunscrito na palavra, é estranho, limitado, reto. Existe, sim, a forma de amar, o meio de querer cheio das curvas de cada um. Então o amor é ação. É verbo. É amar, ao invés de amor. O substantivo é conceitual e não impulsiona. O verbo exige movimento, postura, direção. Exige que eu faça algo. Empurra-me para o outro. O amor, este conceito estático, não me interessa.  Eu preciso de batalha, combate, força. Talvez seja por isso que os relacionamentos morram: vivem mais no conceito do que na ação. O amor é pano de fundo, é cenário. O amar é o que eu faço ao outro a cada instante. E não é isso, afinal, que nos une ou separa? 

Cada um sabe o que é amar para si.

"Soneto XVII  - Pablo Neruda

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva

dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,

te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és

tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho."

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

sobre a imagem que arrebata meu outro eu

Há de ser bonito. "Há de ser" no tempo indeciso entre palavras doces e rosnares, entre o tempo da calmaria e o tempo da violência do teu instinto macho. Há de queimar. Há de nos arrastar a algum canto desconhecido onde as imagens se desfazem, nuas, criando novas imagens no fundo dos olhos. Hei de quebrar tua espinha e te dizer horrores porque sou feita de remendos. Há de ser turva a água do banho. Há de ser imperfeito. E haverá barulho, medo, escândalo, horror. Haverá gozo. Ternura. Haverá um lábio inferior entre teus dentes. Há de ser inflamado, dolorido. Há de ser retrato a cena da memória. Há de ser intenso, mesmo que a brevidade assole o tempo. Há de ser grande. Há de ser muito. Há de ser loucura, combustão, orgia. Há de ser romance. Há de ser tudo. E também há de ser nada. Há de ser desconhecimento de espera. Há de ser ânsia, ebulição, tormento. Hei de amar teu chão, tuas paredes, tuas frestas. Há de ser eu e tu. Enfim, nós.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

lugares

A sede estranha arranha o pulso que bate débil. O tempo tilinta o vidro transparente - não, não são cristais. Mas o som agudo ecoa no espaço vazio - poderia tudo estar repleto de sons e lugares e desejos. Mas há sombras e nas sombras, refúgio. Há um esconderijo de não-acontecimentos e minúcias em cada minuto. Há lábios-pinturas-esboços de mãos salientes - porque sempre brotam dos lençóis loucuras monossilábicas. Há o borbulhar do futuro ou do destino - o que mais agradar em tempos de cólera e miséria. Há amor. Há flores desbotadas em janelas fechadas. Ventos, ventos deslizantes de um lugar ao sul, inferno alucinado de confissões, metáforas indecentes do dia.
Há amantes. Amantes apenas.

citando Anaïs

"A tua beleza submerge-me, submerge o mais fundo de mim. E quando a tua beleza me queima, dissolvo-me como nunca, perante um homem, me dissolvera. De entre os homens eu era a diferente, era eu própria, mas em ti vejo a parte de mim que és tu. Sinto-te em mim. Sinto a minha própria voz tornar-se mais grave como se te tivesse bebido, como se cada parcela da nossa semelhança estivesse soldada pelo fogo e a fissura não fosse detectável."


[Anaïs Nin - A Casa do Incesto]

terça-feira, 23 de outubro de 2012

minuano

meu caminho é encontrar o minuano
litoral sul da Via Lactea
seguir de mãos dadas
até o primeiro círculo do inferno.

Soy el verbo



Soy el verbo que da acción a una buena conversación
y cuando tu me nombras siente ganas.
soy...la nueva alternativa contra contaminación
y tu eres la energía que me carga.
Soy una arboleda que da sombra a tu casa,
un viento suave que te soba la cara.
De to'os tus sueños, negra, soy la manifestacion,
tu eres esa libertad soñada.
Soy la serenidad que lleva a la meditación
y tu eres ese tan sagrado mantra.
Soy...ese juguito e' parcha que te baja la presión
y siempre que te sube tu me llamas, ya
tira la sábana, sal de la cama
vamos a conquistar toda la casa.
De todo lo que tu acostumbras soy contradición
Creo que eso es lo que a ti te llama.
La complicidad es tanta que nuestras vibraciones se complementan
Lo que tienes me hace falta y lo que tengo te hace ser mas completa
La afinidad es tanta miro a tus ojos y ya se lo que piensas
Te quiero porque eres tantas cositas bellas que me haces creer que soy
...la levadura que te hace crecer el corazón
y tu la vitamina que me hace falta.
Soy ese rocío que se posa en tu vegetación
y tu esa tierra fértil que esta escasa.
Soy la blanca arena que alfombra tu playa
todo el follaje que da vida a tu mapa
de toda idea creativa soy la gestacion
tu eres la utopia a tu te llama.
La complicidad es tanta que nuestras vibraciones se complementan
Lo que tienes me hace falta y lo que tengo te hace ser mas completa
La afinidad es tanta miro a tus ojos y ya se lo que piensas
Te quiero porque eres tantas cositas bellas que me hacen sentir muy bien.
Que soy, soy la locura que estremece, soy tu adicción
y tu eres mi felicidad, mi calma
soy...una colonia que va en busca de liberación
y tu eres esa dosis de esperanza.
soy...la cordillera que en la distancia te cura la visión con su elegancia.
De todo loco que lo intenta soy la frustración
tu eres ese reto que me encanta
La complicidad es tanta que nuestras vibraciones se complementan
Lo que tienes me hace falta y lo que tengo te hace ser mas completa
La afinidad es tanta miro a tus ojos y ya se lo que piensas
Te quiero porque eres tantas cositas bellas que me hacen sentir muy bien.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

átimo

há de ser eterno o instante
dos olhos
tal como o instante do grito

haverá infinitude no gesto
que viverá ligeiro na pele
permanente n'outro tempo do corpo
no tempo que anestesia o átimo
que castiga a saudade
que fere docemente a memória

e quando a eternidade do segundo esquecido
de um milésimo de intento
encharcar teus olhos com maresia
haverá no tempo um transtorno alcoólico
agitação tumultuosa
na profundidade de tua garganta

gritos espiralados em meu verbo conjugado
no futuro do meu instante presente.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

em noites assim
não há nada maior
do que o desejo que me machuques.

até sangrar.

até morrer.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

chão

na terra do chão do teu cômodo
suspiro louca
no escuro que há dentro de nós
no inferno que nos consome
entranhas e adornos
desfaço-me em ti
- meu querer apocalíptico.

tua saliva quente me conta tuas sandices de amar
tuas animalices
segredos homicidas, glutonices e pavores
ardências monstruosas e desmedidas
língua tua, minha carne exposta
teus dentes a me desenhar brutalidades
e rosnar desejos
de corpos vulcânicos
em chão frio
em manhã de Primavera.


domingo, 7 de outubro de 2012

sobressalto

e sobressaltada com a claridade do dia
enfio-me novamente no escuro das pálpebras
pra te sonhar meiguices

quarta-feira, 3 de outubro de 2012



Oli el viento, lo vi libre y me enamore
lo vi libre y me enamore
Me desperto tan dulcemente, acaricio mi pelo y me enamoro,
y la lluvia madruguera golpea en mi ventana,
vos caes, y mientras yo, te observo caer, asi

Tu misterio es mucho mas interesante que mi imaginación

y cuando caigas en mi charco voy a sumergirme en vos,
mirando en el reflejo voy a sumergirme en vos,
y la lluvia madruguera golpea en mi ventana,
vos caes y mientras yo te observo caer asi,

que maravillosa forma de empezar el dia..

enroscandonos, enroscandonos asi

... densificaria el aire ...

... densificaria el tiempo ..
.. asi

Oli en viento, lo vi libre y me enamore,

lo vi libre y me enamore
me desperto taan dulcemente,
acaricio mi pelo
y me enamoro

dos teus silêncios de amor

Na crueza de teus silêncios - tuas palavras poucas - descobri tua língua. Ouvi teus manifestos de amar. E de perambular nesse escuro que é o vazio de tua distância - porque jamais és presença, tamanha saudade a que me condena a alma - descubro-me cega. Vejo corvos em minhas pálpebras. Sinto remansos embebidos em anis e tormentas tomando forma em meu céu azul - meu paraíso e inferno. E sonho teu amor escorrendo pelos meus flancos, transbordado de todos os meus cantos e curvas, embriagando-me poros e garganta. Sou eu, apenas, erotizando tua verdade em mim. Porque me fodes cada vez que falas de amor. Porque sonhas com minha boca, minhas coxas, minha carne quente. Porque espumas em tua mão quando me imaginas por dentro - espuma salgada de teu desejo vibrante. Porque sou o nome que tua boca balbucia no silêncio escuro do teu quarto. E por me amares assim, latejante e homicida, sopro palavras com hálito de amoras em tua direção: espera. Ama. Devora.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

seres

Deslizo a ponta do dedo médio na borda do copo lentamente, esperando que algum som venha romper o silêncio da sala. Há apenas a música que toca em minha cabeça e o silêncio ensurdecedor do lado de fora. São dois ambientes que não se misturam por completo - o lado de dentro e o lado de fora do corpo. E o lado de fora é oco, por mais estranho que possa parecer, enquanto meu interior ebule em maciez e doçura - porque hei de ser doce e suave em meus desatinos. E quando meus olhos cerram-se na noite do meu espírito partido, as trevas me engolem inteira pra tua morte, pro teu desespero homicida de me querer mais que me amar, de me destroçar em partes que não se reunem novamente, de me pulverizar no meio de tua fome, de tua miséria, de teu desengano. E já não sou mais eu, então. Sou tuas vísceras. Sou tua saliva. Reviro teu estômago com força mas não quero que me regurgites. Sou umas dores que se espalham pelo teu corpo, pelas tuas veias bailarinas de homem nu. Sou aquela droga que te acelera o pulso e te dilata a pupila - aquela adrenalina que bebes a goles largos em noites cinzas. Um movimento bruto enlaça nossos desejos mórbidos de seres distintos. 
Sou inteira teu rancor e tua matança.
 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

sem título X

era sutil o querer do tempo
querer sem tempo
de tempo velho
e  querer moço
roçar de brisa
em sol de outono
meia-luz
vinho-sangue
amor tinto
lençol alvo
palavras, silêncios
desejos
carne trêmula
boca
amor
e mais nada.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Javier Velaza

No es inútil amarse,
finalmente.
Lo mismo que amaestrar serpientes, nos exige
técnica refinada y perder la vergüenza
de actuar frente al mundo en taparrabos.
Y unos nervios de acero.

Pero amar es oficio
saludable también: su liturgia apacigua
el ocio que enajena -como supo Catulo-
y perdió a las ciudades más felices.
Bajo la cuerda floja dispone -no pidáis
una red, porque tal no es posible- otra cuerda,
pero última
tan floja,
tan inútil a veces,
bajo la cual no hay nada.

Y entreabre
ventanas que te oreen la cólera y exhiban
a tu noche otras noches diferentes, y así
sólo el amor nos salva a fin de cuentas
del peligro peor que se conoce:
ser sólo -y nada más- nosotros mismos.

Por eso,
ahora que está ya dicho todo y tengo
un sitio en el país de la blasfemia,
ahora que este dolor de hacer palabra
con el propio dolor
traspasa los umbrales
del miedo,
necesito de tu amor como analgésico;
que vengas con tus besos de morfina a sedarme,
y rodees mi talle con tus brazos
haciendo un salvavidas, para impedir que me hunda
la plomada letal de la tristeza;
que me pongas vestidos de esperanza -ya casi
no recordaba una palabra así-,
aunque me queden grandes como a un niño
la camisa más grande de su padre;
que administres mi olvido y el don de la inconsciencia;
que me albergues de mí -mi enemigo peor
y más tenaz-, que me hagas un socaire,
aunque sea mentira
-porque todos es mentira
y la tuya es piadosa-;
que me tapes los ojos
y digas ya pasó, ya pasó, ya pasó
-aunque nada se pase, porque nada se pasa-,
ya pasó,
ya pasó,
ya pasó,
ya pasó.

Y si nada nos libra de la muerte,
al menos que el amor nos salve de la vida.


[El salvavidas - Javier Velaza]

terça-feira, 11 de setembro de 2012

poema de morte em manhã de inverno

entre tanto querer
entre tantos dias
havia de ser o querer de morte
a excitar-lhe os nervos
a antevisão dolorosa
de um fim próximo a outro início
entremeios nevrálgicos
e submersos
submundos
sub-humanos
marginais em seus desejos imundos
de morte em manhã de inverno.

domingo, 12 de agosto de 2012

poema incompleto

nasce com o parir
não uma criança
mas um pai
um homem que nasce
na esperança de ser
presença, espírito, força.
grito primal
traz à vida
essa vida velha
cansada
renovada e renascida
parida do ventre 
que ele mesmo fecundou
quando tudo era silêncio,
miséria, solidão.
Quando tudo era amor.

sábado, 21 de julho de 2012

Saramago

"Homem, não tenhas medo, a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele, aposto que nunca tinhas pensado nisto, tranpostas todo o tempo de um lado para outro uma escuridão (...), meu caro, tens de aprender a viver com a escuridão de fora como aprendeste a viver com a escuridão de dentro"

[José Saramago - Todos os Nomes]

quarta-feira, 18 de julho de 2012

fome

e o verbo se faz carne
no sonho que quase existe
nessa realidade visceral
de fomes e misérias
e lampejos
presença imperativa
de verbo imperativo
e ultrajado por matéria
coisificando o que há de sonhar
e beber
e pulsar
sangue quente a vazar
desta porção amorfa
de cheiro que se dissipa
com o tempo
[nunca, nunca na memória]
com palavras que fincam desejos
em pele estranha
terra distante de tudo
ardências e dentes trincados
emputecidos com a danação
dessa fome sempre a saciar
no dia seguinte
no próximo outono
em algum tempo.

sábado, 14 de julho de 2012

hospedeiro

a besta que deixas escapar
perde-se na estepe
na imensidão livre das sevícias
e da escuridão da clausura do teu corpo
do peso do teu espírito
de tuas grades de ossos, carne e pensamentos

mas a besta volta
[ela sempre volta]

porque há de sentir fome outra vez.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

calares

Em cada palavra caótica
dessa gramática desalinhada
feito carne torta
afoga-se o entendimento
e se beija o pânico
a efemeridade do tempo
uma incredulidade arredia
de rasgar silêncios em brasa
e falares lacônicos
onde o calar é explícito
e o falar, demasia.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

tristeza

É triste não conseguir engolir. É triste a voz ficar presa na garganta - esse lugar tão vibrante de sentir. É triste não sentir os cheiros das coisas, não ver cor no dia, não querer sair do lugar. Ou mudar de pele quando ainda não é hora. Ou largar os vícios. Os sonhos. Ou sentir que o chão te falta, que a esquina é mais perto do que você imaginava, que o carteiro não passa mais na sua rua, que a música parou de tocar abruptamente. É triste não desejar. Ou desejar demais sem poder ter. Ou sentir sede, frio ou fome do que te é essencial, do que te faz vivo.
É triste esquecer.

terça-feira, 12 de junho de 2012

assim, bem simples e infinito

Eu queria te dar um presente diferente. É sempre tão difícil dar os presentes mais legais do mundo... Não, não estou falando dos presentes fáceis das vitrines... Eu queria te dar um presente infinito, sem prazo de validade, sempre presente, sempre.
Eu queria te dar um filho. Uma música, talvez. Um deserto inteiro. Três planetas. Aquelas nuvens enormes de tempestades. Todos os sorrisos do mundo. Um ornitorrinco imortal. Uma nave espacial. Uma viagem à Vênus (ou à Marte, a escolher). Um oceano cheio de vida. A fonte da juventude.  Um gato falante. Uma espada forjada por Hefesto.
Eu queria te dar um presente diferente porque te amo. E não é por causa desta data específica ou de qualquer outra que seja um marco nesse lance lindo que nós temos. É qualquer dia, qualquer hora, desde que dê vontade. É simplesmente porque você faz minha vida mais bonita, meus sorrisos mais largos, meus amanheceres mais azuis.

Eu te amo, Heinz Prellwitz.

domingo, 13 de maio de 2012

útero

A gente se sabe mãe quando pousa os olhos pela primeira vez naquela coisinha pequena e indefesa. A gente entende ali que a vida mudou, que a gente mudou. É rápido, muito rápido. E é pra sempre. A gente já sente a primeira dor, a primeira agonia, se apaixona à primeira vista. É um amor diferente de tudo. A gente ama mais do que com o coração: a gente ama com o útero.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

fereza

Oferto a ti meus delitos de amar - minha carnificina. A delinquência incontrolável que me prostra aos teus pés, tua cintura. E me farejas sacrifício e rosnas doces brutalidades e glutonices, porque tua fome é o que busca minha carne mercenária. E tu me sentes pronta na ponta de tua língua vibrante, no silêncio ensurdecedor dessas madrugadas ao meio-dia, meia-tarde, meia-noite. Eu te faço engasgar na própria fome, soluçar com a própria saliva enquanto te banqueteias em mim - inteira carne, pele e vísceras. E te farto de peito aberto e coxas escancaradas, borrada de vermelho na imensidão da mesa vazia. E meus olhos suicidas te atiçam o comedimento e te florescem a crueldade que nasce na penúria de quem deseja: espetáculo feroz de tua virilidade. 

terça-feira, 10 de abril de 2012

instinto

Gosto de algum método. Não de todo ele inscrito pelos ares, porque o método exagerado tende a nos castrar, a nos tornar frios. O instinto é um bom método. A antecipação das coisas. O sentir antes da  materialização dos acontecimentos. O antever. E há quentura no instinto. Há um quê de bonito. Fluidez. Não, não é a ansiedade da véspera: é o pressentir, ter essa sensibilidade e conexão com o que te envolve, com aquilo que te espera, com o que não está exatamente ao teu lado ou ao alcance dos olhos. É acreditar não no que está, mas no que é. É ser, mesmo sem estar. É ser ciente, ser completo, ser presente. 
O instinto é a ousadia de ter fé em si mesmo.

segunda-feira, 19 de março de 2012

infinitude

Há aqui estes cristais brutos. Estas pedras mal lapidadas e inacabadas. Um espírito atônito com uma aspereza bonita de sentir. Um corpo que se estira e esvazia e grita e cala a saudade do porto desconhecido, do que ainda está por vir. A saudade da completude do mundo que já era inteiro antes que se descobrisse mundo, com suas frestas e ranhuras e desfiladeiros - como aparenta quebrado o que é inteiro. E te antecipo resquícios de um futuro que salta aos olhos e me eletrifica a carne. Porque tudo é aspiração, delícia, erupção, maremoto. Tudo é espuma. Ganir. Abrigo dessa sombra que me protege e converte em outra - em outras. Sou toda humanidade e infinitudes. Desejos. Respostas gritadas no infinitivo - sem tempo - da tua língua.


quinta-feira, 15 de março de 2012

sem título X

no meio da noite acordada de hora em hora
há o silêncio que fere o espaço
que consome os nervos do corpo
não chove, não venta, não há estrela cadente
é escuro apenas
vazio de falta de sonho
silêncio de sonhares repletos de quereres
quereres de teus olhos tuas células teus atritos
teus desesperos de ser na esquina do mundo
onde o vento não faz a curva
porque é sempre reto quando olhas
é tudo ali e por toda a parte
saudade, fome, amares descoordenados
lonjura.
amor apenas.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

tempo

Passa rápido esse menino-tempo. De pensar, já passou. Passou correndo. O futuro começa quando termino a frase - presente, torna-se agora. Mas acaba de correr dos lábios que balbuciaram "agora" - eis que se torna passado. O que é o tempo, então? Esse moço, o tempo, é apenas um instante. Uma impressão ou antecipação do que virá no momento em que passa; um adeus ao que se vê e uma saudação ao que surge na rota de colisão. Eu amarei [em um minuto], eu amo [neste instante], eu amei [um minuto atrás]. Três tempos em sessenta segundos: parece-me tudo presente em sentidos e impressões. Passa rápido esse tempo-menino. Passa rápido porque não existe.

O tempo é uma dicotomia atemporal.

Eu amei [há vinte anos], eu amo [neste instante], eu amarei [conjugado no futuro sem prazo]

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

chuva

depois da chuva
vi-me inteira
rasgada de nuvem

porque gira o céu
no céu da tua boca
- meu sonho azul -

memória
convulsão
homem-vertigem
movediço
via de fuga escarlate
- foge pra dentro de mim -

depois da chuva.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

3:30

Há um monstro residente em mim. Onde vivem as coisas selvagens. Onde não há palavras bonitas. Onde não há palavras. Onde sou só instinto, bicho, fome, morte. Onde sou só esconderijo, caverna, lama. Onde sou lava. Onde sou escuro. Vazio. Tremor. Temor. Guerra. Tristeza. Insônia.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Anaïs - parte IX

Antes que pudesse responder, viu-se envolvida por braços que surgiam por trás do seu corpo e alcançavam-lhe o sexo pela frente. "Não..."
As mãos faziam movimentos de maré bruta. O outro corpo parecia querer fundir-se àquela carne que tremia e desejava e se esquivava. As dúvidas se desfaziam em sua virilha, em suas nádegas, nas coxas que estavam bambas. O mundo parecia querer explodir... "Não, não é assim... Eu quero implodir...Eu quero um cigarro... Eu quero morrer..." E ele seguia bruto, firme, sério. Anaïs via o rosto dele através do espelho. Fechava os olhos e sabia exatamente cada músculo que tensionava. Sabia que mordia a própria boca, que desejava castigá-la mais um bocado por suas incertezas e seus medos. Queria exorcizá-la ou roubar-lhe definitivamente a alma - porque o corpo ele já havia tomado definitivamente.
- Eu não quero você. Você me machuca. Você me faz feliz. Você me confunde...
E cada vez que tentava resistir, sentia que ele a apertava mais, que a deixava imóvel, sem fôlego, sem rumo.
- Diga pra mim, Anaïs... O que você vê, querida?
- Eu... vejo você...
- Não, querida... conte-me o que você realmente vê... Ou vai esconder de mim, Anaïs?
As mãos bonitas seguravam os quadris de Anaïs com força de encontro ao corpo. "A janela está aberta... Desgraçado... Como ele entrou, afinal?" Não ouvia mais Carmina Burana tocar na sala. A voz de Al Green surgiu, então, feito mágica - seria testemunha de qualquer coisa que pudesse acontecer naquele quarto. "De onde está vindo a música?" Com os dentes dele cravados em sua nuca - feito bicho - e as mãos em qualquer lugar entre o sexo e o culote, sussurrou:
- Você... está aqui... Quem trocou a música?
- Que música, querida? - soltou a nuca de Anaïs o suficiente para responder sua pergunta. 
"Vai chover. Eu preciso fechar a janela." Anaïs fechava os olhos e sentia que ele sorria cravando-lhe os dentes. O pulso latejava. O sexo latejava. A cabeça latejava. Curvou-se para frente para tirar a nuca dos dentes dele, de modo que as nádegas se encaixaram perfeitamente no molde do outro corpo.
- Assim, meu anjo... Venha cá...
Havia um tom diferente na voz dele. Havia algo cretino e mais viril do que antes. Havia um monstro por trás dos olhos, por dentro da pele. Anaïs riu.
- Vai fazer o quê? Me comer à força? - riu nervosa.
Uma das mãos segurou Anaïs pelo ombro, não deixando que se levantasse, enquanto a outra segurava a  cintura e conduzia seu corpo na direção da penteadeira. Debruçou Anaïs entre os badulaques de mulher, com o rosto virado para o espelho. 
- Vai fugir de mim, querida? - tirou lentamente a camisa e o jeans. Ela permaneceu imóvel, louca, cheia de dúvidas, sem saber se deveria correr nua pelo corredor e descer as escadas pedindo ajuda, ou se deveria permanecer ali quieta, em estado de ebulição silenciosa que toma conta dos suicidas. "Eu realmente poderia fumar agora. Acho que sinto medo..."
Debruçada sobre a penteadeira e com o rosto de frente para o espelho, sentia que ele acariciava sua bunda, seu quadril, suas coxas. As pernas tremiam tanto que mal conseguia se aguentar de pé - fosse de medo ou desejo. Seus dedos descobriram o sexo molhado. Outro meio sorriso. Anaïs sentiu, então, o corpo dele se encaixando em seu sexo, devagar, bem devagar. Olhava os olhos de Anaïs pelo espelho. Ia até o fundo lentamente, segurando Anaïs pelas ancas. Sorria. Ela sorriu de volta, desafiadora.
- Eu não te amo.
- Não, meu anjo?
- Não...
- Sabe, meu bem... você provoca coisas más em mim, devo admitir... [comia Anaïs com mais força] Eu conheço cada canto da sua cabecinha perturbada... [respirava forte entre uma frase e outra] Conheço tua carne... [as mãos apertavam Anaïs cada vez mais forte]
Antes que pudesse tentar se mover, ele abandonou-lhe o sexo e se meteu por outro lado.
- Filho da puta!
Anaïs sentiu doer. Sentiu que ele queria destroçá-la, que queria fazer arder o corpo - uma ardência diferente da que sempre sentia quando ele a tocava. 
- Quer que eu pare, meu bem?
Ele a comia por trás feito um animal, com tanta força que Anaïs, em alguns momentos, achava que fosse desmaiar.
- Olhe-se no espelho, Anaïs... Conte-me ...o que você vê... 
Anaïs olhava os olhos vermelhos pelo espelho, olhos vermelhos de choro, de desejo, de sangue, de vergonha, de amor.
- Por quê? - ela soluçava as palavras entre gemidos e grunhidos.
- Você me pediu pra eu te machucar... [ele fazia menção ao primeiro encontro, onde ela suplicava que ele a machucasse nas escadas do prédio] Você precisa que doa pra se sentir viva... [arfava] Antes eu não quis te machucar, Anaïs... [fazia mais forte] Mas você não me deixa outra escolha...
- Por favor...
- Eu quero te rasgar, querida... quero machucar você tão fundo... para que nunca mais esqueça o meu nome...
Anaïs realmente não sabia - ou não lembrava o nome dele. Não entendia como poderia ter passado aquelas horas - que pareciam ter sido a vida inteira - com ele sem que tivesse escutado ou gravado seu nome. "Como eu posso te amar tanto assim?"
- Diga, querida... Qual o meu nome?
Anaïs sentia que a dor se dissipava num prazer estranho, um desejo desconhecido de pernas cada vez mais bambas.
- Não...
- O que você vê, Anaïs? - o coito tomava uma proporção bestial, sonora, antropofágica. O rosto dele não era mais o mesmo, estava distorcido, diferente, deformado. O quarto parecia derreter ao redor deles. Aquilo parecia o inferno que Anaïs sonhava, o lugar escuro que cultivava sem que tivesse noção do que significava carregá-lo em si.
- Diga... o meu... nome!
Anaïs sentia que outro mundo se rompera dentro dela. Ou algo se fundira definitivamente ali. E o mundo anoiteceu novamente.

[continua]



quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

silêncio

Teu punho feroz
oferece-me sonhos
e desvirtudes
tuas veias
- loucas -
devoram pensares
que tua boca esquece
porque tua boca saliva
tua boca não pensa

- por que pensaria a boca?

teu corpo grita silêncios
me ensurdece com a imagem
- esboço de teus segredos de homem -
tu me contas desejos
com o corpo

- palavras imaginárias -
porque o corpo não profere palavras

há de se amar
comer
ferir
amar novamente
e morrer
- sem data, razão ou pressa -
no pequeno suicídio
silencioso
do sepulcro do teu corpo.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Anaïs - parte VIII: o espelho

Aquilo não parecia passar de um sonho burlesco.
- Como você entrou? - a cabeça de Anaïs parecia rodar pelo avesso e a garganta falhava ao tentar conter a voz embargada.
- Você sempre me deixa entrar, querida. 
As mãos correram pelas costas de Anaïs enquanto o corpo grande se juntava ao dela ao lado do vaso. "Eu me sinto patética nesse estado...". Aquela era mais uma das cenas fora de contexto dos dias que lembrava ter vivido. O passado mais distante que dois ou três dias parecia ter escoado por alguma espécie de ralo com proteção, onde toda a água escorre e ficam apenas os dejetos que precisam ser postos no lixo. 
- Por que eu não consigo lembrar a porra do seu nome? O que você está fazendo comigo, afinal? Por que eu me sinto estranha e confusa e a merda da minha cabeça não para de doer quando você vai embora? Por que você vai embora, merda? E por que diabos volta?!
Todo o fôlego foi usado de uma vez para fazer aquele monte de perguntas e destilar o descontentamento de uma pessoa que se dizia feliz com a solidão, que lidava terrivelmente com o sofrimento alimentado por um punhado de sem-razões que justificassem sua existência, que forjava um mundo de atrocidades imaginárias contra si mesma - atrocidades de pensar.
- Eu não te dei as chaves.
- Não disse que havia me dado. Você apenas deixa que eu entre. 
Havia um movimento discreto de canto de boca que ela não havia notado antes. "Desgraçado..."
- Não fode! - ela se levantou aos tropeços e voltou ao quarto para procurar os cigarros. "Onde eu deixei a porra do isqueiro?". Havia isqueiros e fósforos espalhados por todo o apartamento. Havia cigarros e cinzeiros por todo lado também. Não queria precisar voltar, refazer os caminhos e lembrar do que não era preciso. Bastava que tudo estivesse onde precisava estar - por todo canto - para que pudesse viver tranquila. "Não, eu não sou tranquila."
Os olhos pacientes seguiam-na pelo apartamento, com um misto de sarcasmo e piedade. Anaïs andava de um lado para outro, tentando não parar ou não encarar os olhos do outro: sentia-se envergonhada por estar tão exposta e neurótica, como se os olhos dele pudessem rasgar-lhe a pele do abdome para que se alimentasse de suas vísceras. "Eu esqueci de novo de fazer as unhas."
E entre a caminhada em círculos pelo apartamento e as tragadas no cigarro amassado, Anaïs parou diante da janela do quarto novamente. Olhou a rua. Despiu-se. Olhou-se no espelho. O horror estava refletido ali: não era ela que via. Havia se tornado uma criatura diferente. 
- Mas que m...
- São seus olhos, querida. Olhos, cabeça... seus crimes de sentir... Um prodígio... Isso é só a antecipação silenciosa do inferno que te consome... Agora me diga, Anaïs... o que você vê?
[silêncio...]

[continua...]



esquina

Guardo um canto teu em mim
canto meu de espaço
canto composto
canto-vértice
canto-mudo
canto teu
canto
Eu.

Eu
canto
o tempo
pelo tempo
que ainda houver
nesse espaço infinito
de sonhos transversais
e nomes gemidos em música
no desfiladeiro alcóolico de tua garganta.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O Fortuna


O Fortuna
velut luna
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis.
vita detestabilis,
nunc obdurat
et tunc curat;
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.

Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
nunc per ludum
dorsum nudum
fero tui sceleris.

Sors salutis
et virtutis
michi nunc contraria,
est affectus
et defectus
semper in angaria.
Hac in hora
sine mora
corde pulsum tangite;
quod per sortem
sternit fortem,
mecum omnes plangite!

CARMINA BURANA 17, in Carmina Moralia et Satirica (Canções da Moral [dos valores] e Satíricas)

Anaïs - parte VII - estômago



Anaïs não conseguia se levantar da cama. Seu corpo inteiro doía intensamente: uma dor latejante, quente, inflamada. Sentia uma mal estar agonizante na boca do estômago - aquela estranha sensação magnética de ponta de faca, uma sensação metálica não perfurante de aço frio e cego.
"Que merda estranha", disse revirando-se na cama. A ebulição que havia tomado sua pele agora se concentrava toda no estômago e a náusea provocava-lhe vertigens e um insuportável gosto amargo na boca. "Vou enfiar o dedo na garganta", pensou. "Deve aliviar..." Arrastou-se da cama de lençóis amarrotados e cheirando a sexo da noite anterior - "Quando foi que ele esteve aqui? Merda. Foi há séculos." - até o banheiro. Ali jazia uma toalha molhada e o cheiro de sabonete. Ali jazia o lugar estranho que mais amava naquele apartamento, porque apesar de fumar feito louca, era o único espaço que não fedia a cigarro. Abaixar-se diante do vaso sanitário foi lento e doloroso, como se cada fibra do corpo se estendesse inimaginavelmente até não haver mais elasticidade em parte alguma do corpo. "Esse filho da puta me deixou pior do que estava antes." Os olhos ficaram exatamente na altura de uma pequena rachadura no azulejo antigo da parede. "Está sujo. Tá vendo, estúpida? Se você limpasse essa merda, isso não pareceria uma rachadura. É só sujeira." E os dedos começaram a esfregar a linha escura sobre o azulejo verde. Esfregava com mais força na medida em que notava que não se tratava de sujeira. Não era superficial. As cicatrizes ali eram bem mais profundas. "Merda!" - gritou. E se prostrou diante do vaso, curvada e soluçando mais do que havia feito na noite anterior. Tudo parecia ter perdido sentido em tão poucas horas, como se a vida tivesse se resumido sem aviso prévio. Não havia plano de escape ou rota que a levasse a outro caminho senão aquele resto de vida insossa e sem sentido. Aquela falta de vida, na verdade, era apenas mais um cômodo estranho na estranha mente de Anaïs, naquele espaço escuro e repleto de quimeras. "Eles mentem o tempo todo. Não existe porra de sentido em nada..." O indicador direito pressionava o meio da língua para baixo, na tentativa de expurgar o que havia de ruim dentro dela, de separá-la de algo nocivo que ela própria cultivava. Queria vomitar seus erros, emendar o que pudesse, corrigir o que ainda tivesse salvação. "Por que eles não param de dançar na minha cabeça?" Cada pressão do dedo na língua acompanhava um espasmo abdominal e o gosto insuportavelmente amargo de bile. Mas cada lágrima que corria pelo canto do rosto tinha carregava o sal do nome desconhecido daquele homem que a penalizara por ser quem era, tão imperfeita e duramente frágil. E quando pensava que a Roda da Fortuna massacrava seu mundinho pequeno com toda força, começou a ouvir Carmina Burana ecoar da sala do apartamento, como se a loucura se deslocasse para a sua realidade. 
E aquela mão conhecida de unhas bem cortadas novamente surgia do nada para aplacar sua dor, para segurar os ombros que caíam na direção do vaso, para dizer que sua insanidade existia e que era preciso dominá-la. Ele havia voltado para curar-lhe o estômago. E tirar o gosto amargo da boca de Anaïs.

[continua...]

sob a pele

De V. e A.
[também publicado em http://poeticaipsisverbis.blogspot.com/view/classic ]

(v)

há um lobo
através de mim

não sei que faz
tua carne
que causa nele
que causa em mim
fome

(a)

porque dou a carne
em oferta

a fome que te devora
e move e alimenta

porque tua fome te consome inteiro

te faz firme
no propósito da caça

(v)

o lobo que me habita
anseia
todavia
que me devores:

quer te comer
primeiro
por dentro

(a)

sinto pulsar
dentes
desejos
fomes
anseios
lupinos
por baixo da pele mansa
que me cobre -

disfarce

(v)

cobre-te
faz de ti
nessa pele
gente
- e eu te comerei até 
descobrir-te

descoberta
nua de si
como eu

selvagem

(a)

em pele viva
carne crua
teus pelos sob minhas unhas
eu
viva
inteira
nua

tua