EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 27 de março de 2023

Grito

De sermos intuição
Não perecível ao tempo
Aos vôos 
Aos anos
De sermos o próprio tempo
Deuses e algozes
De nós e sempre
Nesse ondular de estranhezas
E perigos
E tristezas
E sorrisos
De sermos matéria
E alma
- mais alma que matéria -
De sermos gana e regurgito
Pane, silêncio e grito
De sermos pão e fome
Indigente e nome
De sermos assim,
Caos irrestrito,
não há clarão que nos agite
Ou escuro que nos assombre.

sábado, 7 de janeiro de 2023

pêndulo

Pêndulo
Penduro
Perduro
Nesse vai-e-vem
Antropofágico
Cáustico
Das horas até o encontro.

Pêndulo
Duro
Perdido
No zigue zague
Tique taque
Tonteante
Tateante
Vertiginosa[mente]
Louco.

Pêndulo
Preceito 
Preâmbulo 
Cláusulas pétreas
Acordos-cortinas
Prateleiras-penínsulas.

Pêndulo
Ponteiro
Tempo
Perdura
Vida.

domingo, 4 de setembro de 2022

primavera

Os ares dos primeiros dias de setembro prometem cantos e floresceres no topo das copas. 
Sinais de vida e manhãs ensolaradas e azuis que não apagam, de longe, a gravidade do frio que passou. 

Um longo inverno, 
um longo inferno. 
Pés e mãos enrigecidos da sombra que pairou e perdura; 
lábios rachados de fome, 
saudade ou secura. 
Há um vidrar de olhos no horizonte sem nuvens que aguardamos. 

Álcool, 
Sex Pistols, 
cortinas de fumaça, 
horas perdidas, 
colchão, 
cigarros, 
avenidas. 

Pétalas amassadas na calçada da procissão que ainda não começou. 
Tarde multicor salpicando a acidez do dia mais longo. A língua larga e quente vibrando a pornografia dos quereres aflitos e afetuosos das mentes confusas e brilhantes. 

Alerta vermelho, 
azul, 
sinal verde pra nós. 
Uma porta, duas chaves. 
Um poema-presente.
Nossa primavera.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

chamamento

Andanças, cartas-poemas e amores que antecedem paixões. Pena, tinta e  açucenas na nudez das costas. Dentes, unhas, gritos, mesas. Olhos pequenos e soluços marcando o ritmo do amar sem fim, na cadência bonita do desejo que não cabe em si, não cabe no viver uma vez ou duas, ou no confinamento de dois corpos. São estrelas-canções a dançar pelos desfiladeiros do tempo que não se conta, sedutor com seus tentáculos urticantes e hipnóticos de medusa, na dança infinita de nós dois. Sigo marefeita, com esse calendário lunar que me espuma na beleza de teus beijos, malabares e poemas, na volta das esquinas, sinais, cruzamentos, intermitências, planetas distantes. Encontramo-nos, enfim, no tempo depois do tempo, no chamamento das matas e rios, anos-luz antes do fim.

Dia D, hora H

Atropelamo-nos em frente ao muro dos trilhos, em meio ao caos urbano e calores de 38 graus. All star quicando entre estações no subúrbio. Sol, lua, Vênus no céu de desejos. Um poema, dois livros, maçãs do amor (do rosto) mordidas (trezentas vezes), boca de nuvem, ambrosia. Amassos, fitas, carro de polícia, lava-jato, último ônibus, Baixada à vista. Um bilhete deixado na pele carimbado com a hora não marcada do retorno. Queixo e rosto "felizferidos por barba de amor" ou algo que o valha, profeticamente descrito por Artur da Távola nos idos dos 1970. A doçura pouco discreta da selvageria das paixões intermunicipais, intergalácticas, poéticas e infinitamente sem data de vencimento. Deuses reencarnados. Quem descreverá primeiro o paraíso apocalíptico do tesão? Ruas vazias testemunham o motim de mãos dadas - pernas, pernas, pernas.

O subúrbio agora é inteiro saudade.

Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2022. O dia seguinte. Perdidos estávamos, agora encontrados.)



Contagem regressiva: agora

Contamos agora os segundos e os segredos. Dia D, hora H. Pista livre, plataforma pronta. Escafandrista e astronauta preparam-se para o susto da colisão. Já não é possível respirar dentro dos trajes. O painel mostra a proximidade do objeto em direção à nave. O mar se levanta, ansioso. Temos sol. Sem probabilidade de chuva, ventos de 15 km entre leste e sudeste para amansar calores, suores e explosões do impacto. O povo de Atlantis circula incauto pelos arredores do pouso - mas que mal há nisso? Olhem para o céu, senhores! Mas não sem antes molhar os pés no sal. Deixem queimar os rostos, apertar os olhos, afrouxar os cintos, beijar as bocas, saber o que não se conhecia antes da partida.

Estamos bem. Desembarque em curso. Esperamos do lado de fora.

(Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 2022. Fim da clausura. Encontro. Deleite. Paixão.)