EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

escapismo...

Eu escrevo sempre em terceira pessoa. "Não são elas, sou eu". Sempre. Em algum momento, há algo borbulhando dentro de mim: uma dor que precisa ser acalentada, um desejo que precisa ser satisfeito, uma revelação.
Hoje há uma dor estranha dentro de mim, uma dor de saudade, uma dor de medo, uma dor de não-sei-o-quê que me incomoda e quase me afoga nesse mar revolto hormonal e cíclico.
Não há lua no céu, as estrelas fugiram. As nuvens parecem tão violentamente entristecidas que despejam toda a raiva do mundo chorando, aos soluços e lampejos. Acabo de notar que voltei a utilizar o escapismo.
Sim, falo de mim. E a chuva que molhou até os ossos ontem não conseguiu lavar essa tristeza. Há dias sinto-me tão terrivelmente só que não dá vontade de viver. É aquela loucura arrebatadora que me aflige por alguns dias. É aquela vontade de sumir, de deixar de ser mãe, filha, amiga, namorada, o que quer que seja, por um ou dois dias. Ou até essa sensação passar. Mas o medo de ficar sozinha é tão aterrador que me leva à cama. O sono vem, não preciso me preocupar.
O único problema é que o sono traz sonhos que nem sempre são bons. E o despertar é brusco, e a cama, vazia.
Postado por Nina

quarta-feira, 28 de maio de 2008

a chegada, a partida, o começo...

Era um dia de sol. E eu vi um pássaro. E um avião. Logo depois, veio o monstro de metal te carregando na barriga, vomitando, quase parindo sua presença na minha frente. Sorri.
Sorri e te beijei com o sol no peito, com a alma voando ao nosso redor, com o coração na boca. Ninguém mais te levaria de mim, pelo breve período de três dias.
Mas foi com um sorriso amargo e dissimulado que presenciei o Leviatã de metal te engolindo novamente, para te carregar para longe, para a pedra que o rio cavou.
Hei de me banhar naqueles rios, de beber da água da Barreira para sempre voltar ao começo...
Postado por Nina

segunda-feira, 12 de maio de 2008

masturbação...

Gozo com palavras. Faço sexo com elas enquanto escrevo. Isso torna o ato de escrever orgástico, quase sexual. Da mesma forma, excito-me ao ler.
Além do sexo entre as coxas, tenho em mim órgãos sexuais nos olhos e nas pontas dos dedos.
Se falo de masturbação? Sim, falo da masturbação literária.
Não tenho a pretensão de ser a melhor amante, mas uma amante completamente passional e dedicada, entregue ao prazer de unir signos e contextualizar sonhos e significações neles.
Quando os dedos seguram a pena, é o símbolo fálico que está nela representado. Minhas mãos manipulam o instrumento como manipulariam o pênis excitado, ansiosa por extrair dele o máximo prazer que ele poderia me proporcionar. Eu masturbo a pena para que ela goze no papel palavras que me excitam, palavras que me fazem chorar, palavras que me trazem doces (ou amargas) recordações desse mundo que não existe e está sempre tão presente, tão entranhado em mim.
O ato de escrever é como poesia sexuada cantada pelos dedos. Agora entendo que posso fazer poesia. Basta escrever com o ímpeto de provocação. Masturbar-me para o leitor. Ou masturbá-lo.

domingo, 11 de maio de 2008

não somos, tornamo-nos...

Aprender, ao contrário do que muitas vezes pensamos, não é sofrido. Pode ser que exija mais dedicação em algumas circunstâncias: um tombo, um arranhão, uma dor, mas sofrimento, não.
Pode ser que o grande problema seja que, à medida que envelhecemos, consideramo-nos senhores da razão e da sabedoria, detentores das verdades absolutas.
É mentira. Somos, na verdade, crianças que crescem para aprender e apreender coisas em diversas etapas. Tudo depende de querer correr os riscos e entregar-se às situações para absorver os ensinamentos que cada uma nos traz.

Não somos: transformamo-nos em. Não somos naturalmente mães, transformamo-nos em mães quando nascem nossos filhos. Não somos naturalmente mulheres ou homens, transformamo-nos nestes ou naquelas a partir do momento em que nascemos e assumimos nosso papel na sociedade. Não somos naturalmente heterosexuais, transformamo-nos em heterosexuais.

Seguimos lendo, relendo, aprendendo, construindo, demolindo. Há coisas demais dentro e fora de nós: cores, sensações, calor, loucura. E todas essas coisas - inclusive a loucura - interagem e formam o que vai além do material: a intangibilidade da alma.

"Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura." (Nietzsche)
Postado por Nina

sexta-feira, 9 de maio de 2008

memória...


Sentiam vontades que entendiam apenas quando olhavam-se. Não porque houvesse explicação, mas pela cumplicidade sem necessidade de declaração que nutriam entre si. Eram cruéis aos olhos dos demais.

Ela levantava o vestido e colocava-se estrategicamente em seu colo para beijá-lo, onde quer que fosse, escandalizando aqueles que não os conheciam. Tinha um gosto estranho pela estranheza. Fazia com que os demais desejassem possuir o que não estava ao alcance dos normais. Era naturalmente pervertida.

Era excitante a provocação pública. Olhos femininos alheios desejavam o que estava em sua cama, em sua carne, o que fazia parte de sua vida. E ela, aquele animal na pele de mulher, lambia-lhe o rosto e esfregava-lhe o sexo para marcá-lo com seu cheiro. Da mesma forma, ele, igualmente obcecado, mordia-lhe inteira e sugeria, orgulhoso, que exibisse os hematomas aos amigos.

Quando ela sangrava, ele se excitava. Quando ele chorava, ela sorria. Era o misto de prazer e dor que compartilhavam que os unia de forma tão peculiar. Era uma espécie de devoção pelo profano, quase uma doença que os embriagava e tirava a razão.

E agora, enquanto escrevo, excito-me a lembrar das marcas dos dentes e unhas, do cheiro do sexo, do gosto do gozo.

Memória.

Postado por Nina

quinta-feira, 8 de maio de 2008

diálogo perdido...

- Por que eu fico inconformada com as coisas?
- Não sei.
- Não devia?
- Sim, faz parte.
- Que pensamentos idiotas.
- Concordo, totalmente idiotas.
- E então?
- Então o quê?
- Sei lá. Quer jantar?
- Pode ser.
- Ótimo, te pego às oito. Qual filme?
- Filme? Não era jantar?
- Ah, sim, claro...
- Uhn...

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Miniconto - A Queda

A QUEDA
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A primeira coisa que senti, foi o gosto de sangue na boca. Só quando me levantei é que percebi que a queda havia sido tão forte, que as pedras do asfalto estavam grudadas no meu lábio. A areia da rua entre os dentes. Ele disse que iria empinar, mas não empinou, só queria me assustar, era brincadeira. Era brincadeira, até, após a ladeira, ele alcançar o cruzamento. Na bicicletinha da minha prima, rosa desbotada com cestinha branca na frente, a bicicleta que eu aprendi a pedalar. Eu ralei o joelho no primeiro tombo que levei quando estava aprendendo a andar de bicicleta, mesmo assim não chorei. Era criança, podia chorar, ninguém me censuraria. Mas não chorei. Era tarde, cinza, nunca vou esquecer. Como nunca vou esquecer de como se pedala. Teria tanta raiva dele por me humilhar, se...
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Tardes em que fomos pedalar e certa vez eu caí, ele sempre me deixava para trás. Nem me viu, só que me sujei todo, não tinha como disfarçar. Aquele shorts preto, nunca mais ficou da mesma cor depois que a minha avó usou água sanitária para limpar a lama. Todos tiravam sarro. Será que a mancha vermelha sairia com o tempo? Quanto tempo levaria? Quando ele namorava, na cama, dormia e eu ali, do lado, olhando eles dormirem, imaginando se eu passasse a mão nela, bem devagar, ela acordaria? Não encostei nele, não chorei, ele não dormia. Não iria mais acordar.
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Nunca mais, é muito tempo. Pra sempre, também. Só que no fundo, eu me senti feliz. Apesar de tudo, eu não queria, não podia, não deveria, mas me senti feliz. E tirei sarro dele, pela primeira e última vez. Os bons morrem cedo, otário. Adeus.
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POSTADO POR E AGORA JOSÉ?

segunda-feira, 5 de maio de 2008

I Believe in Love








U2

GOD PART II
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Don't believe the devil
I don't believe his book
But the truth is not the same
Without the lies he made up
Don't believe in excess
Success is to give
Don't believe in riches
But you should see where I live
I...
I believe in love
.
Don't believe in forced entry
Don't believe in rape
But every time she passes by
Wild thoughts escape
I don't believe in death row Skid row or the gangs
Don't believe in the Uzi
It just went off in my hand
I...
I believe in love
.
Don't believe in cocaine
Got a speed-ball in my head
I could cut and crack you open
Do you hear what I said?
Don't believe them when they tell me
There ain't no cure
The rich stay healthy
The sick stay poor
I...
I believe in love
.
Don't believe in Goldman
His type like a curse
Instant karma's going to get him
If I don't get him first
Don't believe in rock 'n' roll
Can really change the world
As it spins in revolution
It spirals and turns
I...
I believe in love
.
Don't believe in the 60's
The golden age of pop
You glorify the past
When the future dries up
Heard a singer on the radio late last night
He says he's gonna kick the darkness 'til it bleeds daylight
I...
I believe in love
.
I feel like I'm falling
Like I'm spinning on a wheel
It always stops beside of me
With a presence
I can feel
I...
.
I believe in love
.
Eu acredito no amor. Acima de tudo, apesar de às vezes as coisas ficarem meio amargas.
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Não acredito no demônio
Eu não acredito em seu livro
Mas a verdade não é a mesma
Sem as mentiras que ele inventou
Não acredito em excesso
Sucesso é para dar
Não acredito em riquezas
Mas você deveria ver onde vivo
Eu...
Eu acredito no amor
.
Não acredito em entrada forçada
Não acredito em estupro
Mas cada vez que ela passa por perto
Pensamentos selvagens escapam
Não acredito em fila de morte, nem em fila de patinação nem nas gangues
Não acredito na Uzi
Ela só acabou de cair das minhas mãos
Eu...
Eu acredito no amor
.
Não acredito em cocaína
Tenho um speedball na minha cabeça
Eu posso te cortar e te abrir com um golpe
Escutou o que eu disse?
Não acredito neles quando me contam
Que não há nenhuma cura
Os ricos permanecem saudáveis
Os doentes permanecem pobres
Eu...
Eu acredito no amor
.
Não acredito no Goldman
Seu tipo é como uma maldição
Karma Instantâneo vai pegá-lo
Se eu não o pegar primeiro
Não acredito que o rock 'n' roll
Pode realmente mudar o mundo
Enquanto ele gira em revolução
Espirala e vira
Eu...
Eu acredito no amor
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Não acredito nos anos sessenta
A era de ouro do pop
Você glorifica o passado
Quando o futuro seca todo
Ouvi um cantor no rádio tarde ontem à noite
Ele disse que vai chutar a escuridão até ela sangrar luz do dia
Eu...
Eu acredito no amor
.
Eu sinto como se estivesse caindo
Como se eu estivesse girando em uma roda
Sempre pára ao meu lado
Com uma presença
Eu posso sentir
Eu...
Eu acredito no amor

domingo, 4 de maio de 2008

a incontestável falta do óbvio...

As palavras rasgaram seus ouvidos e, igualmente, seu peito. O resto do mundo parou de existir por minutos que pareciam durar uma eternidade.
O nó em sua garganta não duraria uma noite ou alguns dias: duraria a vida inteira, assim como a verdade das últimas palavras proferidas, da promessa feita.
Sentiu-se completamente sozinha, náufraga, órfã. Era, enfim, a criança que não havia nascido; o aborto retido. Era a falta incontestável do óbvio e, ao mesmo tempo, do imperceptível.
A mobília do quarto parecia olhá-la com ar de censura, como se tivese tomado vida. Mas o silêncio era interrompido pelo impacto leve e salgado na madeira envernizada, formando pequenos córregos sobre o castanho do móvel.
Cada sílaba, uma batida. E cada pronúncia esculpia uma cova no meio do peito, uma lacuna que não seria preenchida.
Havia, então, feridas. Dos dois lados. E eram daquelas que permaneceriam abertas e sangrariam à menor recordação ou saudade.
De tudo, restou apenas o ventre tão infértil quanto solo árido. E um punhado de certezas.
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música do dia...

Que Milton Nascimento me perdoe, mas a melhor interpretação que já ouvi dessa música é do Boca Livre...
Bola de meia, bola de gude
(Milton Nascimento)
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão
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sábado, 3 de maio de 2008

the unforgiven II...


Lay beside me
Tell me what they've done
Speak the words I wanna hear
To make my demons run
The door is locked now
But it's open if you're true
If you can understand the me
Then I can understand the you

Lay beside me
Under wicked sky
Through black of day
Dark of night
We share this paradise
The door cracks open
But there's no sun shining through
Black heart scarring darker still
But there's no sun shining through
No, there's no sun shining through
No, there's no sun shining

What I've felt
What I've known
Turn the pages
Turn the stone
Behind the door
Should I open it for you?

Yeah
What I've felt
What I've known
Sick and tired
I stand alone
Could you be there'cause
I'm the one who waits for you
Or are you unforgiven too?

(...)

cold and blue...

Cold Woman With Fish (By Ben Templesmith)

Com um sorriso frio e transtornado, aquietou-se. Levantou e limpou as mãos nas próprias pernas. Havia passado tanto tempo que as manchas vermelhas já estavam secas nas mãos e braços. Precisava se lavar, sentir-se limpa novamente, exorcisar o demônio (ou demônios) dentro da alma.
Caminhou para fora da casa, onde outrora houvera um lago. Despiu-se e sentou no chão. Os olhos arderam e a boca provou a amargura de seus próprios pensamentos. A lua, vermelha como suas mãos, acolheu suas súplicas. Foi então que notou que tudo ao redor estava seco e cinza, tão seco e frio como ela própria, por dentro.
Não havia mais nada a ser feito. Bastava esperar. Ferira mortalmente quem mais amava e agora podia esperar a própria morte, doce e pacífica, alcançar-lhe.
Sabia, de alguma forma, que estariam juntos novamente.


Postado por Nina

sexta-feira, 2 de maio de 2008

A Pantera e o Jaguar

"A Morte chegará em Asas Rápidas àquele que perturbar a paz do Rei"
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Seus pés, feridos pelo calor das areias escaldantes, deixavam um rastro de sangue pelas dunas. Ele sabia que Sekhmet, a incansável deusa-leoa da punição, a arma de guerra de Rá, o seguiria onde ele fosse por seu crime, de assassinar o faraó. Mas aquele homem não se entregaria, mesmo sabendo que era inútil fugir, ele ganhou o deserto onde os ventos moldam o horizonte e de onde nada retorna. O deus-sol ardia impiedosamente, vigiando sua peregrinação um falcão voava em círculos sobre seus passos. A brisa quente qual o hálito da morte trazia consigo a areia que cegava e sufocava. Atrás de seus calcanhares, surgidos de suas pegadas, escorpiões e serpentes demarcavam a passagem do traidor. As mesmas criaturas que ele usou para envenenar o leito do faraó, que condenou seu maior servo a morte nos labirintos de pedra dos subterrâneos da grande pirâmide, por conhecer demais seus segredos. O Tjati sobreviveu à armadilha e queimou todos os documentos dos escribas, trouxe a morte para a família real, envenenando e decapitando o descendente de Rá para que ele não pudesse receber a honra do embalsamento pelos sacerdotes de Anúbis. Só, talvez, Ísis em pessoa poderia restaurar seu corpo, da mesma maneira que ela fez com seu marido, Osíris, juiz dos mortos, através de magias. Para preparar o cadáver do faraó para a outra vida os embalsamadores precisariam da cabeça que o Tjati atirara no Nilo e que os crocodilos de Sobek devoraram. Ele não só arruinara a dinastia do Egito, mas também destruíra a pós-vida do faraó.
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Os rugidos estavam cada vez mais próximos, logo Sekhmet o alcançaria. Suas pernas fraquejavam, as forças o abandonavam rapidamente. Cego e fraco, a voz sibilante que o guiava dizia que ele estava quase chegando, quase seguro. Não era o medo e sim o ódio que o fazia continuar caminhando. Embora todos o considerassem inquestionavelmente um traidor miserável - ele sabia que em cada lar do Egito as famílias rogavam maldições sobre seu nome - o primeiro a trair foi o faraó por temer o potencial daquele que sempre o ajudou e o admirou. E quando se sofre uma traição dessas, de quem deveria ser o exemplo para todos, tudo que se deseja é vingar-se. Não importa o preço que a mão que o reerga cobre. Somente uma mulher pedia aos deuses que poupassem a vida do Tjati, a serva de Bast, que amava o vizir e sabia que ele não era nenhum conspirador e nunca havia desejado usurpar o poder. O destino dele estava na fé dela. Bast, a deusa-gato era a única capaz de aplacar a fúria de Sekhmet, a deusa-leoa.
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Enfim, chegou ao fim, ao limite. As pernas se dobraram e ao cair, ele sabia que não teria mais como se levantar. Rolou pelas areias até as margens de um oásis seco. O falcão, subitamente caiu por terra, morto. Uma tempestade de areia e fogo negro tomou o ar e engoliu Sekhmet, a confundindo, fazendo-a perder o rastro de sua presa. O exército faraônico que Sekhmet liderava enlouqueceu ante ao poder caótico e as armas que estavam destinadas ao Tjati, acabaram por derramar o sangue dos próprios guerreiros que as empunhavam. Do corpo do Tjati surgiu uma fonte de sangue que encheu todo o oásis, Sekhmet, ao descobrir onde sua caça se escondia, correu para cumprir sua missão. Porém ali, Rá não mais mantinha seu domínio. Aquelas terras esquecidas eram de um outro deus, pertencentes a um outro ser, exilado e poderoso. Sekhmet se banhou no sangue do Tjati, celebrando sua vitória, e quanto mais sangue ela bebia, mais fundo no poço ela afundava. Ébria e descontrolada, Sekhmet percebeu tarde demais a ilusão de Seth, o deus do caos, traição, do deserto, da guerra e das serpentes. O sangue, vinho e veneno, que ela se embebedava não parava de jorrar ao ponto de ameaçar afogá-la. Garras a seguravam pelas patas e a puxavam para baixo, a leoa rugia, tentando fugir. A sua força, no entanto estava comprometida devido ao veneno de Seth. Uma enorme serpente lutava contra Sekhmet e a cada golpe que a rasgava ao meio, dos pedaços a serpente se multiplicava as centenas misturando o sangue divino ao profano. Assim a batalha continuou até a leoa tombar e não restar mais nenhuma serpente. O Tjati havia recorrido ao temível deus Seth para ter sua vingança contra o faraó que o tinha sentenciado a morte. E Seth usou a vingança do Tjati para promover a destruição. Traição atrás de traição, esse ciclo continuaria irremediavelmente, Ouroboros, se não fosse Bast.
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A tempestade se desfez e quando o mundo recobrou sua sanidade, o astro-rei estava sendo invadido por uma sombra. Um sol negro coroado por uma auréola de fogo reinava um novo reino. Que não era nem de Seth, nem de Rá. Nas alturas e profundezas sentiu-se um tremor, e do oásis onde o sangue de Tjati, Seth e Sekhmet se misturaram, surgiu a deusa dos gatos, Bast. A deusa se compadeceu de sua serva que rogava perdão ao seu amado e veio pessoalmente interceder por eles.
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Tjati se tornou uma pantera negra, de olhos de jade e corpo mais profundo e escuro que a mais triste das noites, enquanto a serva de Bast se tornou um jaguar, de olhos cor de argila e mel. E ambos fugiram enquanto o Egito se recuperava da traição, para o coração inóspito do deserto. Onde nem deuses nem homens poderiam os alcançar.
Postado por E AGORA, JOSÉ?