EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 28 de fevereiro de 2009

sobre a memória doente...


Há um arquivo aqui dentro, em algum lugar. Sei que há. Mas as informações estão todas tão truncadas, tão bagunçadamente dispostas. Teria alguém mutilado uma parte de mim? Está faltando algo, eu sei. Mas... o quê?

Há lembranças que se ligam com outras lembranças e desencadeiam uma série de outras lembranças. E a memória - esse verbete que tanto me intriga - por vezes se assemelha a borrões coloridos com os quais me deparo e pergunto: o que é isso?

Sinto como se tivesse exilado involuntariamente algumas recordações por tempo indeterminado. Coisas, pessoas, acontecimentos, confidências: algum rastro de sua existência é deixado em mim. Vejo as pequenas gavetas escancaradas e vazias, algo meio remexido. Alguém esteve aqui. Sei das minhas coisas; conheço minhas coisas. Ou teria sido eu mesma?

Lembro do dia em que troquei confidências com alguém. Contei meu segredo. Ele me confiou o que o consumia há tempos. Lembro sobre o que era mas não lembro o que era. Lembro quando, há quase um ano, confessei que não conseguia me lembrar. Lembro da mágoa que ficou entre nós. Lembro de todas as consequências do meu esquecimento. Mas não me lembro o que era.

Preciso catalogar tudo. Porque está tudo aqui e há pessoas, coisas, acontecimentos e lugares que não quero esquecer.

Está tudo aqui, eu sei. Só não consigo me lembrar.
Ainda espero um grande clarão de lucidez que me desperte da loucura.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

sobre a presença do amor...


Não sinto mais a devastadora dor da partida. O corpo acostumou-se à dormência da espera, que se transforma a partir da sensação causada pela presença do outro corpo. Sinto como se meus fragmentos se dispersassem em porções ainda menores; partículas em ebulição se separam e chocam violentamente umas contra as outras e depois amornam e acalmam. E a ausência do outro é como a água que serena após a fervura, como a brandura das águas de um lago nos dias em que o vento não sopra.

Porém, sua chegada é a água que volta novamente a aquecer e provocar pequenas explosões de dentro para fora; é o sopro do vento que torna a ondular o lago - antes manso - e deixá-lo novamente transbordando. É o fogo, o ruído, a explosão, o desespero. O afago, a luta, o jogo de cartas inacabado, o vinho derramado no branco dos lençóis: o redemoinho espiralando para o centro do meu corpo - a agonia e o êxtase.

Sua ausência é entorpecimento; sua presença, um sopro de vida, um pouco de morte.

A presença do amor é perfeita metáfora.


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

sobre o medo, o horror e a raiva...

O pulso acelera. A vista embaça. O medo causa horror e dormência; logo depois ruboriza a face e os nervos, incendiando por dentro.
E o sangue - atleta furioso galopando pelos corredores estreitos do corpo - amorna, esquenta, ferve, borbulha. E o medo torna-se raiva.
A raiva - esta puta travestida de Lolita - chega sem despertar suspeitas e toma-nos de assalto.
O que fazer com ela? Trancá-la no porão do descaso ou currá-la para que se satisfaça e deixe novamente a casa vazia.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

a razão dos meus sorrisos...

A razão dos meus sorrisos é doce, suave, de voz mansa. É meu calmante, minha calmaria, minha paz em meio à tormenta. É o fim da chuva, o início do dia, a brincadeira de criança, o fechar dos olhos.

Mas a razão dos meus sorrisos também é forte. Grande. É o trovão que antecede a tempestade, é o grito de guerra de Odin.

A razão dos meus sorrisos tem sorrisos que me enchem de alegria, de esperança, de prazer. A razão dos meus sorrisos é a razão da minha falta de razão.

A razão dos meus sorrisos é a minha loucura.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

sobre a cegueira...

Enquanto caminhava com a cegueira na alma
tropecei com passos pequenos e não fui além do jardim,
além da cerca, além do que os olhos embaçados alcançavam.
Mas quando o espírito se fez liberto e encontrou o vento,
da garganta vibrou a canção e os pés tomaram vida própria,
fazendo da imensidão o refúgio sem fronteiras;
do sopro, o sussurro;
dos monossílabos, belas metáforas.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

sobre a masturbação (parte II)...

Não falarei de orgasmos.
O orgasmo é o ato final da masturbação, o ápice. Mas dura tão pouco, que depois as recordações que permanecem são as dos momentos que precedem o gozo, as lembranças do toque, do cheiro, da intensidade.
Gosto quando, despretensioso, ele se toca enquanto conversamos, como se estivéssemos falando banalidades. Gosto quando, de repente, o silêncio ou a concentração são cortados por ofegos e grunhidos quase imperceptíveis. Gosto quando, desafiador, ele propõe - com os olhos faiscantes - que eu leve a mão ao centro do meu corpo e descubra a cova macia e úmida.
E é assim, com os dedos afogados no mar de paredes acolchoadas, que me descubro, me desfaço, me refaço; me destruo e me recomponho. É acariciando o pequeno monte nervoso que ouço o rosnar, o arfar, as súplicas. É a respiração crescente que me acende, meu combustível. É o momento em que realizo a minha fantasia de vestir a pele do outro para saber como é estar em mim, dentro de mim.
É exatamente quando me masturbo que sinto a crueldade transformando o amor em tormento, suplício, angústia, dor. E enquanto os dois opostos se deliciam com a sofreguidão do outro, aproxima-se o instante em que toda a aflição convergirá para um único momento: a paz mútua.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

o monge e a flor...


Sentia apenas a carne coleante que ele possuia na boca. Não via nada, apenas a escuridão que ele oferecera antes de começar a doce tortura. Os olhos (dela) estavam vendados.

Tantalizada pela sensação da língua quente e macia entre as coxas, suspirava, quase em desespero. Nunca havia experimentado a sensação de uma boca plena e faminta na intimidade da alcova.

Sentia como se seu sexo fosse uma fruta, uma flor, e imaginava as nuvens correndo rápido pelo céu que não via. Imaginou o teto abobadado acima deles. Lembrou dos afrescos ali pintados. Sentiu-se culpada. Mas a impressão do sentido que aquela boca causava, o toque da barba, o cheiro que desprendia de seu sexo e impregnava toda a nave central a faziam esquecer de todo o pecado que pudesse estar cometendo.

Sentiu os dedos aliando-se à língua; sentiu algo penetrando a carne, rasgando o sexo que se abria e fechava, mastigando o que quer que lhe fosse oferecido. O corpo inteiro estremecia em pequenos espasmos, fazendo com que o sexo dele se armasse, endurecido contra os pequenos pés, gotejando a baba de delícias contidas durante tanto tempo.

As coxas se contraíam em torno do rosto, pressionando cada vez mais e empurrando o sexo de encontro à boca. A barba densa molhava-se a cada investida da língua que não descansava; gemidos reverberavam pelo amplo espaço que os cercava. As unhas de ambos cavavam a pele do outro, deixando marcas do amor que sentiam.

Aos poucos, enquanto ela empinava o quadril na direção dele, ele se despia, banhado em suor. Em pouco tempo, o hábito havia sido posto de lado. Gemiam e arfavam como dois animais selvagens, como se o mundo pudesse acabar no instante seguinte. Estavam famintos pelo outro.

A boca e a barba enfiados no vale entre as coxas abafavam os gemidos do jovem monge. A mulher emitia sons contidos e pedia perdão pelo delicioso pecado que seu amante mastigava no meio de suas pernas. O inferno havia se instaurado ali. Desejavam a morte, a pequena morte que era prometida aos amantes.

Ela mordeu os lábios, anunciando o ponto máximo do momento. E ele, ao sentir que sua respiração acelerava, investiu mais forte contra a flor aberta que tinha entre os dentes, na ponta da língua. Contraiu as coxas e suplicou para que ela não gozasse.

Com o sexo na mão, levantou-se. Ela chorava, implorando para que ele não parasse. Mas ele queria mais. Já havia pecado e não pararia até conseguir alcançar o máximo que pudesse daquele momento.

Olhou a mulher e fez movimentos rápidos com a mão que tocava o próprio sexo, enquanto a outra alisava a virilha. Olhou os seios e gemeu. Olhou as coxas, as nádegas, o sexo. Como era bonito o sexo aberto como uma flor. Como brilhava, molhado de desejo. O sangue parecia acumular-se num único ponto de seu corpo, e notou como ficava vermelho e lustroso à medida que a fricção aumentava.

Ela, deitada, suplicava. Pedia que ele estivesse nela, do jeito que fosse - língua, dedos, sexo. Abriu-se e com a ponta do dedo tocou o ponto protuberante que guardava seu prazer. Chorou. Desejava que ele fizesse seu corpo ter os espasmos que ela tanto desejava. Ajoelhou-se e pediu. Pôs-se de quatro e ofereceu o que ele quisesse tomar.

Sem hesitar, o jovem padre colocou-se de joelhos atrás dela e a invadiu lentamente, sentindo cada centímetro pulsar na penetração. Fez questão de rasgá-la, indo e vindo com força, soluçando, colocando o terço apoiado em suas costas.

Ela chorava, empinando-se cada vez mais forte na direção dele. Sentia o ventre arder e o sexo dele inchar dentro de seu corpo.

E foi então que a venda dos olhos foi retirada. O jovem ergueu-se mais uma vez e colocou-se diante da mulher. De joelhos à sua frente, os lábios vermelhos dos beijos que haviam trocado o receberam devotamente. Os olhos reviraram e o sangue pulsou mais rápido nas veias. Segurou a mulher pelos cabelos que caíam pelos ombros dourados e pronunciou uma oração em latim, ora arfando, ora engolindo as palavras que saíam desordenadamente. E quando sentiu sua alma querer desprender-se do corpo, afastou-se da boca que o adorava e deixou jorrar o amor espumante no rosto delicado. E quando ela ergueu os olhos em sua direção, clemente, ele desenhou em sua testa e em sua boca o sinal da cruz, abençoando os lábios sublimes que guardavam o mistério divino.

Foram felizes. Sujos e felizes. Proibidamente felizes. Mataram o pecado e a culpa com o amor carnal.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

feito lobos e gatos...

Ele atravessou colinas e rios atrás do rastro felino. E quando encontraram-se, enfim, ecoaram uivos e miados rasgados pela noite, enquanto todas as outras criaturas jaziam adormecidas à luz crepuscular...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

sobre a falta de razão...

As metamorfoses não são uma dádiva: mudanças exigem causas para gerar consequências. Nada se move ou transforma pela simples beleza da transfiguração.

Esse cientificismo exagerado rouba a harmonia das coisas. Nem sempre há uma explicação lógica para eventos.

Vejamos o amor. O amor é uma confusão-quase-literária, uma desrazão sem limites, um pomar carregado no meio do semi-árido. É uma quase-dor sufocante que nos torna felizes e miseráveis.

Lagartas tornam-se borboletas depois de um período dentro do casulo. Passam de insetos sem atrativos a criaturas sedutoras e coloridas. E a explicação mais atraente para tal evento é a menos racional, a improvável, a mais romântica.

Às vezes, o que está bem diante dos olhos talvez seja exatamente o que se procura e não se acha. Talvez haja mais beleza onde não se espera. Talvez haja mais possibilidades no aparentemente impossível. Talvez haja mais amor naquilo que causa, eventualmente, ranger de dentes. Tudo depende do modo diferente de analisar os mesmos acontecimentos: a verdade não está no que se vê diante dos olhos, mas naquilo que se encontra por trás das coisas, naquilo que está além do que a razão esclarece.

Nós, os doces bárbaros, gostamos da falta de explicação, da ausência de razão, da beleza dos escafandristas marcianos que buscam no fundo dos rios as venusianas ideais.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

repostando...

Eu não existo sem você
(Tom Jobim / Vinicius de Moraes)

Eu sei e você sabe,
já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo
levará você de mim
Eu sei e você sabe
que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você

sobre os demônios...

Há dias em que os nossos demônios são de uma crueldade assustadora.
Aprendi a conviver com o meu. Mas quando o outro me mostrou o seu demônio, senti medo. Muito medo.
Foi a primeira vez que isso aconteceu. Porque demônios nunca me assustaram. Nem os alheios. Mas aquele, especialmente, me causou um medo aterrador. O motivo era simples: eu o amava tanto que não pensei que ele também carregasse o inferno em si.
Sentei-me no canto do quarto, abracei as pernas e balancei o corpo para frente e para trás, enquanto a música ia me acalmando, aos poucos, esperando que ele fosse embora...
Não conseguia imaginar como seriam as noites sem ele, o gigante com olhos de menino...

domingo, 1 de fevereiro de 2009

sobre a trilogia essencial...

Eu acredito (com todo esse meu entusiasmo de exteriorizar pensamentos e sentimentos) que o decorrer do dia depende de como ele começa.
É óbvio que cada um tem sua receita íntima. Alguns fazem ginástica, outros gostam de ver o sol nascer coladinho no mar ou entre colinas; há quem apenas leia o jornal ou faça palavras cruzadas.
Eu creio na divindade (pagã, eu sei) da trilogia "café, banho e serotonina". É algo que transcende qualquer caminhada, qualquer sessão de shiatsu ou algo que valha. É aquele pedacinho de paz de espírito essencial pro dia nascer feliz.
Hoje o dia amanheceu cansado, o tempo parece andar arrastado, sem intensidade. Pode ser apenas efeito da falta de dois vértices da trilogia matinal - porque o banho eu já tomei. Preciso de cafeína.
(Meu Deus, como eu fico insuportável sem cafeína!)
Mas e quanto à serotonina?
Se puder fazer sexo, faça. É bom pra pele, não engorda e proporciona benefícios singulares ao corpo e à alma.
Agora, se não puder fazer sexo... Bem, deve haver alguma barra de chocolate perdida por aí...
Hoje, especialmente, queria que o dia - o meu dia - tivesse amanhecido em Parati.

Virgine: carta ao psicanalista

Virgine, logo após iniciar a terapia, depois de várias sessões infrutíferas - pois não conseguia falar - resolveu escrever ao psicanalista as coisas que passavam por sua cabeça durante os 50 minutos em que se encontravam semanalmente. Essa foi a primeira carta:

Descobri-me diferente ainda muito jovem. Perguntava-me diante do espelho o que era aquele grande segredo que tinha certeza que guardava dentro de mim. Sentia que alguma memória perturbadora me acompanhava, algo que havia trancado dentro de meu calabouço pessoal.

As noites pareciam infindáveis punições, pois os sonhos me atordoavam incessantemente. Porém, quando despertava, as recordações fugiam novamente para o calabouço. Mas a sensação daquele grito contido dentro da garganta me sufocava cada vez mais. E a falta de ar era por vezes tão desesperadora que quase podia sentir os pulmões explodindo. Aquilo precisava sair; eu precisava respirar. E os dias passavam com imagens e lugares que eu já havia visto antes.

Outra noite. Outro sonho. Lençóis novamente encharcados ao meu redor. O ar era denso e pesado. Precisei sair do quarto. Mas a fobia não cessava. Precisei sair da casa.

A grama úmida do jardim parecia tão suave ao toque dos meus pés que, tão logo pude senti-la, uma lufada de ar fresco lambeu meu rosto e invadiu meus pulmões. Aliviada, deitei na grama e olhei o céu escuro salpicado de estrelas. Como era tudo tão imenso... e como eu me sentia livre fora daquele quarto escuro e sem ar.

Recordei-me de quando tinha 5 anos e passeava de mãos dadas com papai nos domingos ensolarados. Os parques pareciam tão enormes e eu corria pela grama com os braços abertos, ziguezagueando entre as árvores das vastas aléias. Ele vinha correndo logo atrás, me deixando ganhar, fingindo que eu era muito mais rápida que ele. E quando chegávamos à outra extremidade, ele se jogava no chão e dizia que estava acabado, completando: "Você é uma lagartinha mutante, Virgine! Vai se tornar uma maravilhosa borboleta e voar, voar, voar..." É a última recordação que tenho de minha infância. E de meu pai.

Depois disso, só me lembro da adolescência, de ter vivido com meus avós numa cidadela de poucos habitantes e de ter ido para a capital francesa para cursar a universidade. Desde então vivo só. Porque quando estou comigo, não me sinto solitária; é uma mistura de paz e doce melancolia, um estado de quietude de alma.

Quando estou sozinha mergulho em mim, porque preciso lembrar quem eu sou, preciso conhecer a Virgine que fui. Preciso abrir o calabouço e descobrir meu próprio segredo. Preciso enfrentar meus próprios demônios. Por isso estou aqui hoje.