EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

quase-nada

Quase-tempo bate à porta às 5:17
avisando das horas perdidas, vazias, escuras,
das horas azuis que enchem de silêncio
a via perturbada do quase-caminho
de três estradas e meia
quatro goles de café quase-quente
sete gritos cerrados na garganta
e setenta mililitros de bile vertido no chão amarelado
com meia dúzia de angústias medos impropérios
indecências maldades pavores
e o terror da dor de farpas por baixo das unhas
da estaca revirando meu útero e meus olhos por trás das pálpebras
transbordando meus vícios pela despensa vazia
regurgitando meus "ais" anestésicos
e um bocado de perversidades desse eu cru.
E eis que essa quase-morte veio me parir novamente
por entre quase-suspiros, quase-dias, quase-nada.
Encontro-me à beira da vida,
eu, quase-monstro.

Da abstinência

De repente acordo me revirando por baixo das estrias, dos encaixes desencontros, dos remendos. Dobradiças me mantêm ereta. E não é o medo que me emudece, é a falta dele. É a paz ensurdecedora. E percebo que o que me move é o caos, uma guerra sempre inacabada, os vícios, a loucura. Há uma contenção insuportável para o que há de monstruoso e que é tão amável aos meus olhos e paladar. Porque a estranheza mantém vivo esse desejo réptil que se arrasta por baixo da pele, da carcaça outrora inquieta, e sinto falta do gosto imaginário de sangue na boca. Dos cheiros ácidos. Do desejo de quase morte e sons guturais. Porque de repente tudo é morfina e frio. Oco. Abstinência. 
Sinto falta da inconstância molhada do que há por dentro. Perdi-me da violência das marés. Mas sinto que meu demônio me espera ao pé da cama - grave, tenso, violento. E com ele vem a cadência pulsante e destruidora e hemorrágica que minha língua-víbora apaziguou com outra droga.
E de lamber novamente o espelho, expurgo de minha embriaguez a besta crua da ferida translúcida. Meus estilhaços me sorriem com deboche.