EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 31 de julho de 2010

invasões bárbaras

É noite de lua - rosno. Uivo para o céu. Deixo no ar o cheiro agridoce da concha venusiana onde deságua minha alma. É meu cantar para o sátiro - meu convite à dança.
Aproximação. Um início de delicadeza. Mas te quero bruto - pele embaixo das unhas, gosto de sangue na boca, um pouco de dor onde pulsa a vida nesse instante. Faço-me cadela. Culpa dessa outra maldita que reverbera nas paredes do meu corpo. Solto o verbo sujo em teus ouvidos e passo a língua em teu rosto, teu nome, teu desejo. De pelos eriçados - qual bicho - deixo-lhe o cio marcado na pele das coxas - nos pelos da virilha. E te quero forte, lento, fundo. Quero aspereza, crueza, um pouco de hostilidade. Invasão, barbárie, curra. Porque não tenho medo - tenho vida. Porque agora - nessas horas em que violentas meu mundo - sinto vibrar o coração entre as pernas.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Confissões

Confesso-me culpada.
Todas as confissões estão hermeticamente guardadas sob a pele dos lábios. Conto se me beijares, me engolires, me arrancares a roupa. Conto se me lançares à cama, ao chão, à mesa do quarto de hotel. Conto apenas se disseres petulâncias dentro de minha boca, se me ateares fogo à carne. Conto tudo se vieres mais para dentro de mim, se tocares minha alma. Confesso meus pecados, peço perdão se me castigares.
Castiga-me. Mastiga-me. Entorta-me. Ama-me, enfim.
Confesso-me tua.


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Brevidade

Cansaço. O corpo pede cama, calma, mar. Tudo pede raspas de silêncio, vento, maresia. Brevidade salinizada. Ulceração sentimental e temporária. Garganta ardida de grunhidos contidos e arrastados pelo tempo não contado. Umas doses de veneno e um punhado de mentiras analgésicas, alcoólicas, semânticas. Filosofia barata de uma mente débil. O peito bradando em alto e bom som um bocado de tolices e efemeridades ordinárias - cão a ladrar por trás das grades. Uma beleza que existe apenas aos olhos alheios - alheios a tudo o que está submerso. Desfaçatez labiríntica e espiralada. E quanto mais pergunto, menos respostas busco - porque não quero saber. Não sei saber. Desvergonha assumida de uma mulher pelo avesso com sorrisos indecentes de canto de boca. Lábios carmim sem confissão pronta ou discurso decorado. Improviso ambulante de paranóias sobre a mesa de jantar. Porque não há coerência nessa fala, nessa prosa, nesse corpo. São devaneios, apenas. Meus maremotos sentimentais. Meu instante oceanizado e transcrito. Minha verdade sem nexo.

Crueza

Sou vísceras da cabeça aos pés - estou crua e pelo avesso. O estômago queima, os pulmões enlouquecem, o coração salta em desatino de fúria de amor. Sou mil monstros, mil demônios, outros tantos anjos sem pele - o que é a pele se minha alma é que grita pelos cantos? E essa lava que ferve e borbulha por dentro desses rios de curso duvidoso me tortura, me desfia um bocado de sonhos, me desafia a lucidez - maldita lava. E a ausência me encharca de álcool e me lança o fósforo aceso. É a saudade a queimar e reduzir a carne a cinzas e alma. Outro desvario dessa embriaguez de querer que tu me causas. Uma dádiva de não-existência de tempo, sombra ou restos. O começo do mundo. O extremo. Um amanhecer que desconheço e que me enche os olhos de luz - vertigem avassaladora da sua alma dentro da minha. Respiro-te e me abro, profunda, espasmódica, de olhos borrados, rosto ferido de tanto amar*. Pois é assim que me entrego: nua, crispada, inteira... em carne viva.


* Artur da Távola dizia que não havia coisa mais bonita do que um rosto de mulher felizferido de barba de amor...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Vício

Com teus dedos enroscados em meus fios, obedeço a uma ordem balbuciada em tom de amor. Teu demônio me pune por desafiá-lo ao meio-dia. Não sei distinguir teus modos - teus pensamentos são incógnitos à luz do dia. Só sei que me rasgas enquanto te peço carinho, e me acaricias quando te imploro pena de morte - porque a morte que vem de ti me faz renascer em doses homeopáticas e tresloucadas. Vício irrecuperável.


Reviro teus porões. Abro as portas dos meus. Banho-me no lodo de nossos medos e agruras. De rosto contra o chão, sinto cada ranhura do piso com as pontas das unhas quebradas. Ouço o som abafado dos teus passos e as batidas do teu peito aberto a crepitar sentimentos, como sal deitado ao fogo. E quanto mais me repeles, mais me desejas, ainda mais me acolhes. Junto as lascas e cacos e restos da minha alma desencontrada e troco pelo gosto do mar dos seus olhos: tua pele de encontro a minha. Promessas silenciosas de amor. Nossos infernos se cruzando.



Sem título

Noite mal dormida de frio e embriaguez. Palavras martelando a cabeça. Uma coisa estranha a explodir no peito. "É apenas meu coração", penso. 
Sinto-me nua. Sinto-me tão nua que tento me esconder para que não descubras como sou frágil. É a estupidez me assolando a alma. É essa coisa sem nomes ou registros ou certezas. É meu sentimento sem título, sem regras, disléxico. Porque eu não dou nome às coisas - as compreendo na carne. São as minhas verdades bambas e secretas, minha saudade platônica. Sim, sinto uma saudade platônica do que nunca vi, de lugares onde não estive e de calor que não senti. Releio Marisa (ou Mafalda) e entendo mais um pouco das intrusas saudades. Sinto-me invadida também. 
Não sei se sonhei ou se foram pensamentos que me assaltaram em meu estado de semi-consciência, mas vi estrelas no céu escuro de minhas pálpebras fechadas. E aquelas músicas tocavam, tocavam sem parar - todas elas. E senti medo. E me senti menina. E não quis me olhar no espelho e encarar minha cretinice vindo à tona. Mas é inevitável fechar os olhos. É inevitável não me deixar tragar pela maresia do teu azul-esverdeado (ou verde-azulado) que depende da força das marés - um espaço infinito em que nunca estive e ao qual me entrego e lanço mais a cada instante. Porque o mar me acalma. A maresia me transforma. O calor me inunda. A pele me acende. 
Dissipo-me em brumas. Desfaço a distância. Entranho em você, no teu sono, no teu gosto. Chego perto, longe daqui. Deixo meu cheiro em teus poros. Não volto. Deixo-me inteira em ti.

domingo, 4 de julho de 2010

Poema à tarde outonal - ou ao amor descoberto

Quando desisto de outros sentires
e me desnudo daqueles retalhos
é quando o dia verseja o queimor,
o sonho maciço
um bocado de amor
é quando a carne crepita em meu ventre
versos tão loucos quanto teus olhos
palavras tão roucas quanto as que dizes
sussurros, tremores, sentidos urgentes.
E coberta do sal do teu corpo
da água vertida do meio dos olhos
vejo-me livre do medo latente
medo que escoa ralo abaixo,
desejo que viaja alma acima,
arfares de corpo em outro corpo,
boca a sussurrar meu nome
a gritar imundícies dentro de mim
castigo osculante de modos diversos
lábios, língua, falo, vulva,
fome insana de coxas em brasa
cavalgada intensa rumo ao inferno
onde anjos repousam após a batalha.
E enfim - após a paz instaurada -
vibra no âmago o amor liquefeito
promessa muda de amor que se cumpre
torpor de gozo em sonho real
poesia cantada de corpos de amantes
amares despertos em carnes vibrantes
desaguam o presente em tarde outonal.
Tua ausência agora é passado
há em mim um bocado de ti
transbordando teu cheiro, gana, saliva
teu gozo, teus olhos, calor,
repleto da porção que repousa entre as coxas
repleto de nossos vestígios de amor.