EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

DOMÉSTICOS COMO CÃES E GATOS


Ele não se lembrava do passado, das razões que o fizeram escolher o hermetismo misantropo, era um jovem ermitão que evitava qualquer companhia, o amor. Seus pensamentos eram profundos, a velhice já adentrara sua alma antes de corromper o seu corpo. E, próximo de sua cabana, subindo o riacho, quando o ciclo se fechava, ele instintivamente saía das cobertas, e caminhava nas trevas até encontrar o grande carvalho, onde uma corrente pesada o aguardava. Amarrado aos grilhões, com as costas contra a árvore anciã, a máscara humana dava lugar à origem bestial, a natureza selvagem de atormentado. Garras enormes surgiam onde antes delicados dedos folheavam livros de A.F., os braços eram enormes e poderosos, que investiam contra a madeira, a marcando profundamente, tentando forçar o aço que o mantinha preso. A lua em seu zênite de prata, esplendorosa rainha noturna, banhava com seu véu o filho que não sabia aproveitar o dom que ela lhe dera. Os uivos ecoavam na noite, assustando os animais silvestres. Essa foi a razão de Ninon ter tido tanta facilidade em conseguir encontrar algo para se alimentar. Seu instinto predador a comandava na mesma noite, ela estava eriçada, farejando, todos os sentidos aguçados experimentando a noite e a imensa floresta. Logo, um cervo apontou saltando em fuga dos gritos e rosnados lúgubres que de onde Ninon estava, mesmo com a audição felina que possuía, ela não podia ouvir. A perseguição fora iniciada, o animal era rápido, mas a mulher sabia os caminhos dos ermos e de seus segredos. Cuidando para que sua presa corresse para onde ela queria, Ninon apenas seguia a sua caça, que enfim encontrou o tronco na beira do barranco e, sem saída, pulou, esperando que com um salto gracioso pudesse escapar definitivamente das garras vorazes da onça-mulher. Entretanto, seus cascos não encontraram a firmeza do chão, os cornos se enroscaram nos galhos de uma árvore seca enorme, sem chance de se soltar. Do barranco, Ninon sorriu, sua armadilha funcionara, teria comida o suficiente por semanas. Teria realmente, se o santuário verde não tivesse sido invadido por caçadores procurando a cabeça do licantropo, do metamorfo profano. E a pele de um cervo, assim, quase que ofertada, veio a calhar. Os tiros assustaram Ninon, porém era sua caça que estava para ser roubada e ela não permitiria tal ultraje sem luta. Os homens armados riram-se ao ver a onça em corpo de mulher avançando para o combate, entreolharam-se e pensaram que ela daria uma ótima escrava, linda e fogosa. Eles a subestimaram, e também o homem que escolhera aquela floresta para se refugiar da dor.
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Ninon deu seu bote, rápida, sedenta de sangue; ela cravou as unhas negras no braço de um dos caçadores, entretanto eles eram muitos e estavam bem preparados para enfrentar resistência. Uma rede a cobriu e munidos de armas, renderam a mulher. A feriram, e quando estavam prestes a subjugá-la, um uivo longo e terrível reverberou em cada recanto perdido da terra, se multiplicando em força como se uma legião de matilhas estivessem suplicando perdão a lua. O momento de hesitação ante ao som profundo era o que Ninon precisava para mostrar o quão terrível podia ser. Seu frenesi não durou cinco minutos, e mesmo assim, após esse curto espaço de tempo, não havia como olhar para os retalhos destroçados de carne e acreditar que um dia eles formaram cinco homens. Ela então, satisfeita, curiosa, foi vagar tentando procurar quem entoara aquele uivo desesperador. Ela o encontrou em casa, imerso na sua cela de carne, sem saber de nada, e por muito tempo pensou se aquele velho menino era a mesma criatura que ela escutara. Só ele poderia lhe dar o que ela procurava, e ele, sem saber que abria a porta para a sua salvação, permitiu a entrada da mulher em sua vida, da mulher de sua vida. Quando em seus sonhos febris na mesma noite, despertou com Ninon ao seu lado, se banhando, se enroscando em suas pernas, se esfregando com seu sexo em seu corpo, o lobo que tanto o atormentava, a besta que tanto o causara problemas, que o obrigava a suportar o peso de correntes e que o fizera rumar para a solidão o tomou, e, possuído por esse lobo esfomeado, ele a possuiu. Ninon soube que era esse o homem que procurava, a quem ela podia confiar seu nome e sua alma, e de bom grado ela se deixou domesticar. Pois, em seu íntimo ela sentia, os olhos de gato enxergaram que nele, algo também havia sido domesticado e que ele se entregara da mesma maneira a ela. Desde então, os olhos dele, na companhia de seu amor, vibravam em uma luminescência esverdeada. E as fases da lua já não importavam mais, o lobo vinha toda noite fazê-los felizes.

3 comentários:

E agora José? disse...

Eis a continuação, ou uma outra versão (quem sabe?) do conto Ninon. Espero que vocês gostem, tentei ao máximo ser enxuto como são os textos de Nina, espero ter chegado aos pés dela. Para quem ler, independente da crítica, desde já obrigado.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Da mesma forma que as noites não têm sido as mesmas, os dias têm amanhecido trazendo sempre uma surpresa maravilhosa...
Devo dizer que sua estréia por aqui me emocionou, li com lágrimas nos olhos.

Aplausos, por favor!

I'm Nina, Marie, etc... disse...

"Só ele poderia lhe dar o que ela procurava, e ele, sem saber que abria a porta para a sua salvação, permitiu a entrada da mulher em sua vida, da mulher de sua vida."

Essa passagem continua ecoando em minha cabeça...