EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Salomé, a puta mais cara do Moulin Rouge...

Salomé desabrochou para a puberdade aos 11 anos. O corpo começava a tomar formas que chamavam atenção de olhos masculinos. Até mesmo os de seu pai. E assim foi traçado o destino de Salomé.
A pequenina cidade de interior escondia segredos em suas esquinas, segredos de famílias, segredos que são levados para o leito de morte. Com Salomé e sua família não seria diferente.
Aos 11 anos, Salomé não entendia certas coisas que aconteciam à sua volta, principalmente as coisas que aconteciam na ausência de sua mãe. Seu pai, homem grande e de feições duras, porém belas, não resistiu aos encantos que surgiam com o alvorecer da puberdade. Tocava a pequena Salomé, e a felação seguia pelas tardes em que a mulher saía para as compras. A menina sentia nojo e culpa, medo e revolta.
Aos 15 anos, Salomé já era quase mulher. O corpo tornara-se alvo dos desejos mais indecentes de todos os homens da cidade. E sua mãe começava a desconfiar dos olhares que o marido lançava à guria.
Numa tarde quente de março, Salomé refrescava-se no quintal de casa, quando sua mãe saiu para fazer compras. E, não diferente de todas as outras tardes desde seus 11 anos, seu pai a procurou. Desejava a graça osculante da boca de Salomé. Ela chorava, e dizia que não podia porque sentia sede, porque precisava de água, e chorava, chorava. Ele tentava segurá-la pelos cabelos e ela, pela primeira vez, reagia.
Em meio à resistência da pequena, o retorno da mãe. E o escândalo. A mulher surrou a filha, acusando-a de ter seduzido o pai, xingando-a dos nomes mais bárbaros, indiferente à dor e aos anos de sofrimento mudo de Salomé.
E foi assim que decidiram (mãe e pai) colocar a menina para fora de casa. Logo na manhã seguinte, ordenaram que um empregado a levasse para a cidade vizinha, a um lugar chamado Moulin Rouge. Nem de longe era a Moulin Rouge de Montmartre, era apenas um puteiro luxuoso no interior da Bahia, onde velhos coronéis divertiam-se e bebiam todas as noites.
Salomé chorou a viagem inteira: chorou por não ter encontrado abrigo nos braços da mãe, chorou pela mentira que o pai sustentou, chorou pela culpa que não tinha.
Chegando à cidade vizinha, a pequena foi largada à porta do Moulin Rouge, com um bilhete que deveria ser entregue à dona do estabelecimento. O empregado deu as costas e tomou o caminho de volta.
Uma simpática senhora surgiu em um robe vermelho de seda e, admirada com a beleza da menina, ofereceu-lhe abrigo sem pestanejar.
Apesar da vida confortável e da boa educação que tivera, Salomé jamais havia estado em ambiente tão refinado. Olhava ao redor, assustada, com o rosto inchado de quem chorava há 4 anos.
No primeiro ano de sua estada, Salomé apenas observou o movimento noturno do lugar, podendo transitar livremente entre as putas e os coronéis, sem que tomasse parte de nada. Os velhos, enlouquecidos com a jovem e fresca Salomé, faziam ofertas ricas à dona do bordel. Alguns queriam apenas tirar-lhe a virgindade, outros queriam comprar o direito de poder tê-la, exclusivamente, todas as noites. Mas a velha senhora recusou todas as propostas.
Prestes a completar 18 anos, Salomé decidiu fazer parte daquilo tudo. Ofereceu o corpo e os serviços à sua protetora, como forma de agradecimento pela acolhida. No fundo, o que Salomé desejava era vingar-se da figura do pai, entregando-se aos velhos, deixando que eles tivessem o que ele nunca pôde tomar, fazendo com que todos estivessem a seus pés e a adorassem como a uma divindade.
E houve a primeira noite. A inocência encardida de Salomé foi tomada pelo maior lance em moedas.
Os anos correram rápidos e rasteiros e Salomé tornou-se a puta mais cara do Moulin Rouge. Era celebridade. Era a mais bela de todas. Tornou-se a mais habilidosa, a mais especial. Enriquecera a velha dona do bordel - que agora chamava de mãe - e vestia-se das sedas mais finas, perfumava-se com as lavandas mais caras. Seu quarto era só seu, já não dividia mais com as outras moças.
Aos 30 anos, por ocasião da morte da cafetina, Salomé tornou-se dona do Moulin Rouge. Continuava sendo a mais cara, a mais procurada, aquela que punha de joelhos os decrépitos e ricos coronéis. Mas até então, não sabia o que era amar um homem.
Mais uma noite caiu e Salomé desfilava em meio aos clientes forçando sorrisos que não sentia. Estava cansada. Viu aproximar-se o seu primeiro cliente, aquele que havia comprado sua virgindade. A seu lado um jovem rapaz que deveria estar em torno de seus 20 anos, encantador, com os olhos verdes mais belos que já havia visto. O velho senhor o apresentou a Salomé como seu filho. Os olhos encontraram-se e, pela primeira vez, Salomé sentiu o peito aquecer e o pulso acelerar. Sem ouvir o que o velho dizia, Salomé estendeu a mão ao jovem rapaz e o conduziu aos aposentos que ficavam no andar superior.
Sozinhos, perderam-se entre os lençóis. Salomé dançava na cama, matando a fome do jovem, ensinando o que havia aprendido no decorrer dos anos. Ao mesmo tempo, o rapaz a ensinava lições que nunca havia tomado antes. Estava ensinando Salomé a amar.
Salomé estava feliz. Aquele seria seu último cliente.


6 comentários:

E Agora José? disse...

Que a Salomé seja feliz para sempre.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Shall it be...

Doc A. disse...

Andas misteriosa. Tuas metáforas consomem meu pouco juízo.
Por vezes fica difícil traduzir-te.
I see mistery, fog.
BTW, de quem são os olhos?

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Os olhos verdes mais lindos já vistos... Os olhos que encantaram Salomé.
E tudo é mistério...tudo.

Ricardo Augusto disse...

Parafraseando, do outro post, o seu amigo José, garoto de sorte esse dos olhos verdes.
O meu lado romântico me faz desejar que o garoto (provavelmente rico) apaixone-se e a tire dessa vida, mas o meu lado prático me faz temer uma leve tragédia grega...

Texto perfeito. Queria ter essa capacidade de resumir uma história tão rica em tão poucas linhas.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Tudo é possível, Rico...
Lancei a pobre Nina ao inferno, deixei Marie quase enlouquecer, matei Genevieve e Juliette... Salomé merecia ser feliz...

Garota de sorte essa Salomé...