EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Anaïs - parte VIII: o espelho

Aquilo não parecia passar de um sonho burlesco.
- Como você entrou? - a cabeça de Anaïs parecia rodar pelo avesso e a garganta falhava ao tentar conter a voz embargada.
- Você sempre me deixa entrar, querida. 
As mãos correram pelas costas de Anaïs enquanto o corpo grande se juntava ao dela ao lado do vaso. "Eu me sinto patética nesse estado...". Aquela era mais uma das cenas fora de contexto dos dias que lembrava ter vivido. O passado mais distante que dois ou três dias parecia ter escoado por alguma espécie de ralo com proteção, onde toda a água escorre e ficam apenas os dejetos que precisam ser postos no lixo. 
- Por que eu não consigo lembrar a porra do seu nome? O que você está fazendo comigo, afinal? Por que eu me sinto estranha e confusa e a merda da minha cabeça não para de doer quando você vai embora? Por que você vai embora, merda? E por que diabos volta?!
Todo o fôlego foi usado de uma vez para fazer aquele monte de perguntas e destilar o descontentamento de uma pessoa que se dizia feliz com a solidão, que lidava terrivelmente com o sofrimento alimentado por um punhado de sem-razões que justificassem sua existência, que forjava um mundo de atrocidades imaginárias contra si mesma - atrocidades de pensar.
- Eu não te dei as chaves.
- Não disse que havia me dado. Você apenas deixa que eu entre. 
Havia um movimento discreto de canto de boca que ela não havia notado antes. "Desgraçado..."
- Não fode! - ela se levantou aos tropeços e voltou ao quarto para procurar os cigarros. "Onde eu deixei a porra do isqueiro?". Havia isqueiros e fósforos espalhados por todo o apartamento. Havia cigarros e cinzeiros por todo lado também. Não queria precisar voltar, refazer os caminhos e lembrar do que não era preciso. Bastava que tudo estivesse onde precisava estar - por todo canto - para que pudesse viver tranquila. "Não, eu não sou tranquila."
Os olhos pacientes seguiam-na pelo apartamento, com um misto de sarcasmo e piedade. Anaïs andava de um lado para outro, tentando não parar ou não encarar os olhos do outro: sentia-se envergonhada por estar tão exposta e neurótica, como se os olhos dele pudessem rasgar-lhe a pele do abdome para que se alimentasse de suas vísceras. "Eu esqueci de novo de fazer as unhas."
E entre a caminhada em círculos pelo apartamento e as tragadas no cigarro amassado, Anaïs parou diante da janela do quarto novamente. Olhou a rua. Despiu-se. Olhou-se no espelho. O horror estava refletido ali: não era ela que via. Havia se tornado uma criatura diferente. 
- Mas que m...
- São seus olhos, querida. Olhos, cabeça... seus crimes de sentir... Um prodígio... Isso é só a antecipação silenciosa do inferno que te consome... Agora me diga, Anaïs... o que você vê?
[silêncio...]

[continua...]



Nenhum comentário: