EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Anaïs - parte VII - estômago



Anaïs não conseguia se levantar da cama. Seu corpo inteiro doía intensamente: uma dor latejante, quente, inflamada. Sentia uma mal estar agonizante na boca do estômago - aquela estranha sensação magnética de ponta de faca, uma sensação metálica não perfurante de aço frio e cego.
"Que merda estranha", disse revirando-se na cama. A ebulição que havia tomado sua pele agora se concentrava toda no estômago e a náusea provocava-lhe vertigens e um insuportável gosto amargo na boca. "Vou enfiar o dedo na garganta", pensou. "Deve aliviar..." Arrastou-se da cama de lençóis amarrotados e cheirando a sexo da noite anterior - "Quando foi que ele esteve aqui? Merda. Foi há séculos." - até o banheiro. Ali jazia uma toalha molhada e o cheiro de sabonete. Ali jazia o lugar estranho que mais amava naquele apartamento, porque apesar de fumar feito louca, era o único espaço que não fedia a cigarro. Abaixar-se diante do vaso sanitário foi lento e doloroso, como se cada fibra do corpo se estendesse inimaginavelmente até não haver mais elasticidade em parte alguma do corpo. "Esse filho da puta me deixou pior do que estava antes." Os olhos ficaram exatamente na altura de uma pequena rachadura no azulejo antigo da parede. "Está sujo. Tá vendo, estúpida? Se você limpasse essa merda, isso não pareceria uma rachadura. É só sujeira." E os dedos começaram a esfregar a linha escura sobre o azulejo verde. Esfregava com mais força na medida em que notava que não se tratava de sujeira. Não era superficial. As cicatrizes ali eram bem mais profundas. "Merda!" - gritou. E se prostrou diante do vaso, curvada e soluçando mais do que havia feito na noite anterior. Tudo parecia ter perdido sentido em tão poucas horas, como se a vida tivesse se resumido sem aviso prévio. Não havia plano de escape ou rota que a levasse a outro caminho senão aquele resto de vida insossa e sem sentido. Aquela falta de vida, na verdade, era apenas mais um cômodo estranho na estranha mente de Anaïs, naquele espaço escuro e repleto de quimeras. "Eles mentem o tempo todo. Não existe porra de sentido em nada..." O indicador direito pressionava o meio da língua para baixo, na tentativa de expurgar o que havia de ruim dentro dela, de separá-la de algo nocivo que ela própria cultivava. Queria vomitar seus erros, emendar o que pudesse, corrigir o que ainda tivesse salvação. "Por que eles não param de dançar na minha cabeça?" Cada pressão do dedo na língua acompanhava um espasmo abdominal e o gosto insuportavelmente amargo de bile. Mas cada lágrima que corria pelo canto do rosto tinha carregava o sal do nome desconhecido daquele homem que a penalizara por ser quem era, tão imperfeita e duramente frágil. E quando pensava que a Roda da Fortuna massacrava seu mundinho pequeno com toda força, começou a ouvir Carmina Burana ecoar da sala do apartamento, como se a loucura se deslocasse para a sua realidade. 
E aquela mão conhecida de unhas bem cortadas novamente surgia do nada para aplacar sua dor, para segurar os ombros que caíam na direção do vaso, para dizer que sua insanidade existia e que era preciso dominá-la. Ele havia voltado para curar-lhe o estômago. E tirar o gosto amargo da boca de Anaïs.

[continua...]

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