EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 22 de junho de 2008

o espelho...

(...)
A gota quente que escorria do canto do sorriso levou-me a buscar o espelho. Os olhos vermelhos combinavam com o rosto ruborizado, contrastando com o espesso líquido branco que descia dos lábios inchados e carmim. Um sorriso malicioso surgia no retiro de minha boca. E ele, ofegante, jazia entre os lençóis.
Desejava ardentemente que não houvesse o interminável (e merecido) descanso do guerreiro. Eu, animal selvagem fora do cativeiro, não tinha mais limites. Era escrava liberta dos amantes que tivera; puta dissidente da ordem natural das coisas; o avesso do avesso.
Olhava-me nos olhos borrados de pintura, castanhas e transparentes janelas da alma. Toquei o seio nu da outra mulher que observava - eu mesma - e os pêlos, quase inexistentes, molharam-se ainda mais.
Foi assim que ele, meu jovem amante, prostrou-se diante de nós duas - eu e meu reflexo - ardendo novamente, pulsando incontrolável aos pés da Eva de Michelangelo encarnada na figura da meretriz. Eu era, para ele, o princípio do mundo, a razão do pecado, a destruição e a salvação da humanidade, o sagrado e o profano dentro do mesmo templo - o meu corpo.
De joelhos, lambeu o reflexo do meu sexo no espelho, enquanto os dedos violavam a púbis, o meio das coxas, a carne que se dilacerava ao toque. Ele possuía as duas, que se retorciam frente a frente, gêmeas e rivais, disputando a atenção do mesmo homem. Por alguns instantes senti raiva daquela outra que tomava meu lugar. E ela copiava meus gestos, meu desejo, minha forma de amar. E os cachos vermelhos caíam da mesma forma sobre os ombros nus. Seria eu mesma?
Inclinei o quadril, esquivando-me dos dedos. Puxei meu amante pelos cabelos, para que se levantasse. Aquela posição submissa não era dele.
De pé, senti a força das mãos guiando-me de encontro ao meu reflexo. Encostou-me ali, de modo que minha boca beijasse meu outro eu, enquanto era currada por trás, feito cadela, quase sem poder respirar, lambendo os lábios naturalmente rosados da mulher do espelho.
Ah, o sofrimento gozoso...
Salomé
(extraído do diário da prostituta)

Um comentário:

E agora José? disse...

Essa cena do espelho é tão, tão, maravilhosa. Me fez lembrar de uma memória recente.

Eu era, para ele, o princípio do mundo, a razão do pecado, a destruição e a salvação da humanidade, o sagrado e o profano dentro do mesmo templo - o meu corpo.

Essa parte define bem, o que sinto por alguém. Será que a Salomé sabe quem é?