EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Paranóia II

Está frio. Os pés afundam na terra orvalhada da noite. O muro verde ficou para trás. As lamúrias do doente da cama ao lado também.

Do lado de fora, as sombras têm outro movimento: o mundo parece menos turvo. Não há mais vozes pedindo para eu me acalmar. Não há mais mãos vestindo-me de louca. Não há mais pílulas coloridas ou verdades inventadas. Não há mais ninguém para aplacar meu fogo, minha fúria, meus rompantes. A mulher das malditas agulhas ficou do lado de dentro do muro. O albino desgraçado que me machucava o meio das pernas também. Ele era mau, muito mau comigo. Odiava quando me arrastava para o quarto branco do castigo. Sabia que ele abriria as calças. Sabia...

Minha asfixia apocalíptica parece conter-se aos poucos. Ainda ando trôpega, ainda estou dopada. Mas tudo começa a fazer sentido. Eles me deixaram fugir para saber onde vou. Aqueles filhos da puta...

Gente começa a surgir. Está escuro. Vejo pessoas juntas, muito juntas, encostadas em árvores, fazendo movimentos frenéticos e repetitivos, tais bichos, arfando e gemendo. As veias do pescoço do homem estão saltadas, não sei se de raiva ou de amor. Não sei a diferença. O cretino gigante albino balbuciava que me amava enquanto me rasgava com aquela porra dura dentro de mim. Eu sei que ele mentia, eu sei que na verdade ele me odiava. Por isso me machucava de todas as formas possíveis, onde pudesse se encaixar. No começo eu lutava, gritava, mas isso alimentava o seu sentimento - qual fosse - e o deixava sorrindo enquanto babava sobre mim. Com o tempo, acostumei-me com a punição e já não esboçava reação, e aquilo o irritava profundamente, fazendo com que me acertasse rosto e cabeça até que eu gritasse ou chorasse novamente. Aí ele dizia "boa menina" e sorria mais forte dentro de mim.

A essa altura o céu começa a ganhar uma cor estranha, uma mistura de roxos, lilases e laranjas. É a hora do dia - ou da noite - onde céu e inferno se misturam. Sempre houve bons que caíram e maus que subiram. E nessas horas em que as cores se confundem os enganos são desfeitos, afinal, Deus e Diabo mantêm relações diplomáticas.

Agora preciso me lavar. Preciso me trocar. Não posso parecer tão doente, tão... louca. Estou bem. Mas a garganta está seca e as mãos tremem absurdamente. O suor salpica meu rosto, minha nuca, escorre pelo meio dos seios. Por um instante, sinto falta das agulhas daquela infeliz. Eu sabia... Foi um plano para que eu voltasse correndo para aquela merda de cama suada e repugnante. Mas não vou voltar. Também não sei onde ir. Preciso me lavar logo. Se me virem com sangue nas mãos, me mandarão de volta. Se eu voltar, eles me matarão. Ou terei sessões ininterruptas com aquele desgraçado. Prefiro morrer.

Se eu morrer, para onde vou? Tenho medo de ser mandada para o lugar errado novamente. Não sei se sou boa ou má. Não matei um homem - entendo que o livrei de toda dor que sentia. E de todo o incômodo que ele me causava. Fiz um bem duplo dentro de minha concepção mundana. Cometi um pecado mortal perante as leis divinas. Mas e o Diabo? O que tem ele a dizer sobre isso?

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