EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Les amants


Trancaram-se no quarto e ele se despiu como se já estivessem ali há eras e não houvesse a necessidade de dizer que sentia sua falta. O desejo era explícito e cada parte de seu corpo nu deixava claro o quanto ele a desejava exatamente naquele instante. Permaneceu vestida, coxas cerradas e peito ofegante. Havia meses desde seu último encontro íntimo no refúgio das escadas. A boca rosada servira-lhe de abrigo naquela noite distante. E após de cada um de seus encontros, ela prometia a si mesma que não tornaria a vê-lo. Mas o brilho em seus pequenos olhos, a ternura em sua voz e as queimaduras que aquela pele causava na sua faziam-na recebê-lo sempre de volta.
Havia outros amantes de quem se servia como bem entendesse. Eram todos livres, arbitrários, loucos. Os outros dois encaixavam-se perfeitamente em sua insanidade e deixavam marcas por seu corpo, marcas de noites inteiras de luxúria e devassidão, marcas que faziam seu corpo estremecer em gozo inúmeras vezes na mesma ocasião. Usavam seus corpos abertamente e eram felizes.
Ele, porém, era diferente dos outros dois. Beijava-lhe ternamente enquanto a penetrava e o único som detectável era o roçar de seus corpos contra os lençois. Sua respiração era silenciosa. Gemidos não existiam. Arfares e grunhidos eram nulos. O gozo era pacífico. Ele era a paz em meio ao tormento sexual que os outros  provocavam. E, por mais estranho que pudesse parecer, ele era o único capaz de fazê-la abandonar tudo, o único capaz de torná-la fiel. Mas ele não queria; ele a desejava mas não a queria. Ela era, então, de todos, mas sabia-se só dele: ela era pertença do único que não a amava.
Despiu-se e recebeu o outro corpo de braços, coxas e alma abertos. Mais uma vez ele a possuiu silenciosamente. Adormeceu com a tranquilidade de uma criança sem pecados e o braço em torno de seu corpo, encaixados como declarados amantes. 
Ela o observava enquanto dormia, murmurando baixo entre os lábios que o amava, beijando suavemente a boca calada e os olhos fechados. Ele parecia tão doce. Sorrateira, retirou-se do enlace do braço e vestiu-se. Revirou a bolsa à procura do telefone móvel. Ligou. Caminhou para o banheiro e encostou a porta.
- Alô?
- Olá... Desculpe ligar agora. Precisava ouvir...
- O que você precisa ouvir, meu anjo?
- Diga-me...
- O quê?
- Diga-me que me ama...
- Eu te amo... muito. Eu realmente te amo, anjo.
- Obrigada... Boa noite. Volte a dormir...
- Beijos...
Despiu-se novamente e voltou a deitar encaixada no molde do outro corpo. Puxou o braço dele para que a cobrisse. 
- Aonde você foi?
- A lugar nenhum. Estou aqui com você...
Adormeceram, despertaram, amaram-se novamente e se despediram. Só não sabiam até quando.

Um comentário:

E agora José? disse...

Triste, mas muito bem escrito.