EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Clarisse


Olhou o papel e suspirou profundamente, com pesar. Dobrou a pequena folha e a colocou de volta dentro do envelope, fechando em seguida.
- Quando? - perguntou ao homem sentado do outro lado da mesa.
Ele arregaçou a manga esquerda do paletó escuro e olhou longamente para o relógio, voltando, então, os olhos ao rosto da mulher. A marca fina que se formava ao lado da boca simulava um sorriso que respondia a sua pergunta. Mesmo por trás da fumaça do charuto e da luz fraca, era possível ver o prazer cruel estampado em seus olhos, traçando finas linhas vermelhas que se escondiam além do que era possível enxergar e compreender. O silêncio da sala era apenas entrecortado pelo som de fagulhas quando o charuto era tragado e pela fumaça lançada ao ar logo em seguida.
Levantou-se e passou as mãos pelo corpo, alisando a saia bem cortada. Calçou o sapato de salto alto e se dirigiu ao espelho rachado que pendia no canto da sala. Tirou de uma pequena necessaire um batom vermelho que retocou tristemente. Viu-se cansada e mais velha, fechando os olhos para tentar achar um pouco da coragem que ainda lhe restava para seguir adiante ou para mudar completamente a história. Na verdade, tudo não passava de uma escolha.
Perdida dentro de si mesma e encarando o vazio dos olhos pintados, sentiu as mãos dele em sua cintura e o hálito amadeirado do tabaco cubano em seu pescoço. Com os corpos juntos, ele a balançou suavemente para os lados, como que dançando. Seu reflexo era sarcástico.
Sem encará-lo, dirigiu-se à mesa e apanhou a pistola brilhante que repousava sobre ela. Verificou o cartucho e seguiu em direção à porta, sem olhar para trás. Antes de abri-la, sentiu a mão dele agarrar seu pulso e puxá-la de volta. Ele ainda sorria com o mesmo ar sarcástico. Passou os dedos em seus lábios com força, esfregando e borrando o vermelho do batom.
- Você não vai precisar disso.
Beijou-a em seguida.
- Haja o que houver, não chore, não hesite, não se arrependa. Não me decepcione.
Com os olhos queimando, saiu da sala. Caminhou lentamente pelo corredor comprido e escuro que levava à outra sala. Seus passos eram lentos e pesados, e desejava que o tempo parasse para que pudesse encontrar outra saída. O som do sapato de salto ecoava cruelmente pelo corredor.
 A mão apertou a maçaneta com força antes de girá-la. A única diferença entre as duas salas era a falta de fumaça nessa última, e o fato de o homem ali estar amarrado à uma cadeira, amordaçado e vendado. O barulho da porta fechando atrás de suas costas era uma sentença da qual não poderia recorrer. Com o barulho, o homem agitou-se, tentando reagir a algo que ele não compreendia.
Sentindo uma lágrima correr, respirou fundo e foi para junto do homem, que imediatamente reconheceu aquele perfume. Agitou-se ainda mais.
Deixando a arma sobre a mesa, tirou-lhe a venda dos olhos e colocou-se de joelhos à sua frente. Ele tentava falar, mas a mordaça o impedia. Seus olhos desesperados clamavam por alguma explicação. Ela apenas repousou a cabeça em suas pernas e chorou em silêncio.
Após instantes intermináveis de pesar, levantou-se novamente e apanhou a arma sobre a mesa.
- Perdoe-me. É melhor que seja eu a fazer isso.
Ele agora chorava, sem compreender o que acontecia.
Ela se sentou em seu colo e, com a arma na mão, retirou-lhe a mordaça.
- Não diga nada, por favor.
- Mas...
- Sempre amarei você.
- Meu D...
Antes que pudesse terminar a frase, ela o beijou - um beijo passional, cheio de culpa e remorso, cheio de amor.
Levantou-se novamente, abandonando o colo do amante, que permaneceu de olhos fechados, ainda guardando o gosto daquela última recordação.
Atirou. Rápido. Sem dor. Morte.
Destruída, caminhou de volta pelo corredor escuro. Estava morta também.
De volta à sala, foi recebida pelo imutável sorriso irônico do outro homem, que a abraçou sem se importar com a blusa de seda branca respingada de sangue.
- Essa é a minha garota... Sorria, meu bem. Você conseguiu. Eu amo você.
- Ama?
- Claro que sim. Você sabe disso. Por isso ele foi embora. Ele estava deixando você doente. Você se sentirá bem melhor, você vai ver.
Clarisse foi de encontro ao espelho. Viu-se suja, morta, um farrapo do que havia sido.
- Você realmente me ama?
- Sim.
- Morreria por mim?
- Claro.
- Ficaria miserável se eu partisse?
- Irremediavelmente miserável.
- Vai me amar e ficar comigo para sempre?
- Para sempre.
- Então viva com isso para sempre.
Clarisse acertou  a própria cabeça, deixando vestígios de vermelho por toda parte - resto de batom no rosto e resto de vida nas paredes.

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