EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 16 de maio de 2009

paranoia


Os olhos se abrem como se nunca tivessem fechado. O sono, o maldito sono não vem. O outro paciente continua balbuciando ininterruptamente. Deus, como eu queria que ele morresse para que eu pudesse dormir de novo. Aquela vida, não menos miserável que a minha, a ninguém mais importa. A ladainha entra em meus ouvidos e fazem minha cabeça crescer. Fecho os punhos e começo a socar o colchão. Alguém faça ele calar a porra da boca!
Não posso acender a luz; é proibido acender a luz. Se levantar da cama, posso cair. Eu sei que vou cair. Eles me entorpecem para que eu não fale, para que não conte ao mundo a verdade, a grande verdade. Todos têm medo que eu fuja, que desapareça. Então, o plano é me matar lentamente, para que no fim de tudo, eu confirme o que eles dizem - dizem que sou louca. Mas eu não sou louca, porra! É uma conspiração, são todos homens maus, doentes, uns filhos da puta! E querem que eu minta! Eles me perguntam o tempo todo, questionam, dizem que tenho alucinações. Mas não é verdade. Estou sã, lúcida.
Amarraram minhas mãos. Mas agora entendo que preciso fingir para que eles achem que estou domesticada, aceitando suas bulas de merda. Sorrio. A mulher pergunta se estou bem e pede para que eu prometa me comportar e em troca solta os malditos nós. Passa a mão pelo meu cabelo e diz que devo ser uma boa menina. Sorrio de novo. Agora há uma lâmina embaixo de minha língua. Preciso me preparar para fugir. E não há ninguém esperando do outro lado do muro verde.
Outra dose de entorpecente direto na veia. Cretina! Ela me enganou de novo. Eu sabia! Não se pode confiar em ninguém, são todos cúmplices. Agora não consigo levantar de novo. Como vou correr? Eles sabem de tudo, colocaram um rastreador dentro da minha cabeça. Está tudo ficando turvo, estou tão cansada...
Abro os olhos novamente e percebo que o tempo passou. Quanto tempo? Horas, dias, anos? Não sei. Está escuro de novo. Sinto um gosto estranho na minha boca. É sangue - a lâmina cortou minha língua. O outro começa a gemer e se balançar na cama. Está me deixando louca. É isso! Eles o puseram aqui para me enlouquecer! Será que ninguém entende?
Ah... pronto. Agora ele sossegou. Há silêncio novamente no quarto. Mas... estou de pé! Ao lado da cama do miserável. Ele... ele está sujo. O lençol está sujo, ficando vermelho. O pescoço dele... Coitado, ele precisa ser limpo. E eu quero dar uma volta...
O que esta lâmina faz na minha mão?


4 comentários:

E agora José? disse...

A-D-O-R-E-I!

Você está encontrando o seu próprio Jardineiro em você, ou é impressão minha? Seja como for, ficou muito bom.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

É um leve relato sobre o que o transtorno bipolar é capaz de fazer com uma mente insana...
Já o jardineiro é um psicopata frio e cruel... Ele sim, sabe exatamente o que faz...

E agora José? disse...

Você soou como o Coringa agora, se justificando para o Duas-Caras. Não sei se a sua paranóia é um rompante de loucura ou uma fuga calculada, mas que ficou muito bom, isso ficou. Uma estréia interessante na mudança da escrita, sem perder o seu charme. De novo, meus parabéns.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

É bom variar... E algo me diz que partilhamos da mesma opinião... :)