EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

opium cum dignitatem...

Olharam-se e rosnaram baixo para o outro, reconhecendo-se. Onde quer que estivessem, se o corpo pedisse, buscavam refúgio no escuro ou vazio de um cômodo qualquer. Ela entreabia a boca e sorria maliciosamente, um sorriso que era o sinal que ele precisava para que a conduzisse pelo braço para que se satisfizessem, despindo-se da fantasia social convencional. E quando livravam-se de suas máscaras, os demônios que escondiam tomavam seus corpos e o desejo e a sujeira vinham à tona.

Eram diferentes, doentes aos olhos dos outros. Ele levava no corpo marcas do desejo compartilhado, assim como ela. As cicatrizes pelos braços e nuca a deixavam ainda mais atraente, pois traziam recordações de momentos entorpecentes como ópio, onde esqueciam a dor e entregavam-se aos jogos íntimos que lhes causavam euforia incomum...

Ele a torturava, adoravelmente sádico, com uma sensibilidade jamais vista. Emocionava-se a cada corte, enquanto sua pequena masoquista - presa por pesadas amarras - implorava para que ele a deixasse provar da droga que brotava naturalmente de sua pele branca e fria. Os grandes olhos castanhos enchiam-se de emoção, e o peito alvo saltava ao ritmo acelerado da respiração. Ela chorava e gargalhava, descontrolada de desejo, enquanto ele a torturava, nu e excitado, com mais cortes pelos próprios braços. O sexo teso latejava aos olhos da companheira, sem que ela pudesse tocá-lo. E babava, rijo e inchado, louco para invadir a carne vermelha e quente que ela guardava no meio daquelas coxas brancas como nuvens.

Ela desejava ser currada, sentir as estocadas fortes e profundas, como se ele pudesse rasgá-la ao meio. Achavam realmente que o sangue do outro amenizava as dores, intensificando o prazer. Eram insanos, únicos, viciados. E o vício era o outro; o ópio era o sangue, a dor e o prazer.

E quando ele se aproximava, misericordioso, oferecendo-lhe os cortes para seu deleite, ela o aceitava prontamente, como uma cadela a lamber as feridas de seu dono. Beijavam-se, alucinados, enquanto ele esfregava sangue de seu braço em seu sexo para que ela o tragasse inteiro, divino, perfeito.

A boca carnuda o engolia e a língua quente o lambia ferozmente. E quando sentia todas as veias do corpo dilatadas e pulsando descontroladamente, soltava sua fêmea e a fodia como um bárbaro, deliciando-se com todos os gritos e gemidos e lágrimas e risos que vinham de sua cadela insana, entorpecida pelo desejo da carne e pelo ópio do sangue.

O coito seguia, violento, amoroso, incomparável. O prazer vinha em ondas quentes que tomavam o ventre cada vez mais forte, anunciando a plenitude do ato: era o gozo, o mar quente de espuma branca que inundava a vagina, a paz que buscavam depois da tormenta, o sossego do amor natural.

E depois que os corpos repousavam, voltavam ao mundo comum, de pessoas comuns, onde escreviam e registravam sua história, onde os normais indagavam:
- Ficção?



2 comentários:

E agora José? disse...

Incomparável. Adorei a violência desinibida, o desejo único e incomparável, as sensações provocantes. E o fim, ah!, essa pergunta assombrará por muito tempo os leitores sedentos. Viver, foder literalmente literariamente é para poucos.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

"...foder literalmente literariamente..."

Taí uma frase bonita...