"Estão todos mortos", pensou Anaïs. Todos aqueles fantasmas cheios de si e cheirando a naftalina estavam amontoados em um canto sujo do quarto. Acendeu um cigarro e tragou longamente, como se algum mistério da existência pudesse ser desvendado em meio à fumaça em seus pulmões. Olhou ao redor e as garrafas de vinho dos últimos sete dias ainda jaziam pelo chão, espalhadas entre roupas, livros e flores mortas. As anotações picotadas em notas amarelas coladas nas paredes denunciavam a pouca coerência de seus pensamentos.
Caminhou pelo cubículo, chutando as almofadas encardidas e os quatro cinzeiros repletos de pontas de cigarros e cinzas de uns poucos pensares, lendo cada uma das notas das paredes. Com o monte de notinhas imbecis entre os dedos, sentou-se.
"Que merda", resmungou. Um ruga entre os olhos e fumaça lançada longe. Aquela luz nunca funcionava direito e ficava imaginando que deveria ter comprado o abajour lilás da feira de artesanato. Misturou as anotações e tentou montar um quebra-cabeças que não tinha encaixe. Estava puta com a demora da lavanderia, com a multa de trânsito, com a mortadela estragada na geladeira. Mas ela não comia mortadela, não tinha carro, lavava sua própria roupa. Estava enfurecida sem razão, ou talvez por todas as razões que não cabiam em sua vida. Estava faltando alguma coisa e sabia que devia estar anotado entre aqueles malditos papéis amarelos e minúsculos.
Estava sozinha e trancada no apartamento há sete longos dias. Não viu a cara da rua. Não ligou a tv. Não atendeu o telefone. Precisava sentir-se miseravelmente solitária para embarcar numa incursão ao seu próprio calabouço e tentar entender o que havia de errado. Ou talvez não. Talvez precisasse entender que não havia nada de errado, que tudo era uma tremenda babaquice existencial balzaquiana - o que era mais provável. Lembrou novamente dos fantasmas e se virou para o canto onde os havia deixado, aliviando-se ao perceber que ainda estavam ali. "Preciso limpar essa sujeira", resmungou. No fundo, fazia bem saber que estavam ali perto, pois nunca imaginava quando poderia voltar a precisar de algum deles.
Levantou-se e deu de cara com um número anotado na primeira página do caderninho preto. Sorriu. Apagou o cigarro. Imaginou que talvez a sensação fosse de mais um de seus repentes hormonais. Talvez só precisasse ser barbaramente fodida. Quanto tempo fazia? Um, dois meses? Não lembrava ao certo. Sexo era tão absurdamente fácil que Anaïs acabou cansando das trepadas casuais. Era sempre a mesma coisa: bastava fazer aquele jogo casado de olhos e boca que acabaria na cama de algum motel. E isso a irritava profundamente depois do gozo, a ponto de, muitas vezes, não deixar que o amante - quem quer que fosse - a beijasse após o sexo. E sempre dizia que trepava, fodia, transava, mas nunca, nunca dizia que fazia amor.
O interfone toca. Anaïs levanta aos tropeços e xinga por ter que se vestir para atender a porta. Comida chinesa de novo. Sete e meia da noite. Paga a encomenda apressada e deixa o rapaz ficar com o troco. Senta novamente no chão e olha as notinhas. A porcaria da comida está morna, o serviço do restaurante está cada vez mais decadente. "Porra, cadê o camarão?"
Sete e quarenta e cinco. O box de macarrão continua praticamente intacto. Na verdade, não estava realmente com fome. Largou a comida e calçou as sandálias de couro, andando pelo apartamento e juntando as roupas sujas que encontrava em um grande cesto.
Resolveu mudar a maldita rotina. Precisava ir à lavanderia.
(Continua...)
2 comentários:
Adorei, está muito cativante. Essa atmosfera íntima e decadente está perfeita dentro do universo da personagem Anaïs. Os pequenos detalhes que não sabemos o quão são realmente pequenos ou se trazem escondidos mensagens em cada renda rasgada, em cada informação jogada com desprezo. A sua segurança ao escrever é o que torna a sua escrita tão poderosa, o leitor fica preso, esse seu poder de hipnotizar teve efeito em mim desde sempre e continua a se fazer presente.
Tenho certeza que muitos outros vão também ficar se deliciando com cada passagem imaginando a continuação da história e se perguntando sobre o que está se passando na mente de sua criadora.
Divino e profano, adorável.
Do seu maior admirador.
PS: Que vontade de comer comida japonesa e lamber o prato...
Bom, se tudo der certo - e eu tiver saco de continuar escrevendo, claro - haverá um envolvimento que não estava no script... algo meio psicológico e policial - será que eu consigo?
Enfim, se eu não conseguir, você termina pra mim... :)
Comida japonesa? Lamber o prato depois??? Nossa! Ideias sujas permeiam essa minha cabecinha... (you'll be back soon, right? I'll give you a japanese meal... and what a meal!)
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