EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

sábado, 10 de janeiro de 2009

o escritor e a pequena esfinge...


Ele era ácido: a amargura pesada e a dor ao mesmo tempo o incomodavam e causavam um estranho prazer.

O cesto ao lado da escrivaninha estava repleto de manuscritos e páginas datilografadas na velha Remington. Nada o afetava a ponto de causar um tremor interior, um ardor interior, nem mesmo a mulher nua adormecida na cama ao lado de sua mesa. Aquela palidez já não mais o atraía como outrora; os pequenos olhos negros não o incendiavam mais. Adorava observar as alterações cíclicas femininas, mas as dela haviam tornado-se apenas histeria e ciúme. Se algum dia sentiu amor por ela, não podia afirmar. Viviam juntos. Agora sentia-se velho. Sentia como se sua juventude estivesse sendo tragada pela garganta do caos.

O escritor passava as noites em claro, buscando algo que fizesse reacender a paixão pela literatura. Estava cansado e cego pelas nuvens escuras do desencanto. As páginas permaneciam turvas, lamacentas, pesadas. E assim permaneceram até encontrá-la. Era inflamável e pervertida, causava frisson e curiosidade como jamais sentira. Seu espírito era livre, sua alma parecia estar em constante orgia com seus pensamentos. Ele sentiu essa inquietação atingi-lo.

Conheceram-se numa tarde de abril, talvez na fictícia Macondo, onde o tempo parecia não contar. Aproximou-se da brancura da insanidade e aspirou o mistério que exalava de seus lábios. E os véus dos olhos transparentes convidavam-no a bailar, a uivar, a cantar. Os labirintos emoldurados nos fonemas conduziam-no ao encontro de si mesmo, da alma confinada e esquecida que clamava por liberdade.

Esqueceu a clausura do amor que não sentiu, o amor gasto e sem salvação, deixando para trás o vazio monótono da obviedade, entregando-se ao enigma dos olhos da Pequena Esfinge.

E quando sua alma ardeu dentro da outra, murmurou:

- Diga-me seu nome.
- Devora-me ou te devoro.

O mistério alimentou a poesia.

2 comentários:

E agora José? disse...

Eu conheço essa história e já a havia visto de diversas formas. Mas a sua, esta, é a mais bela, a que traz mais poesia em si. Esquecendo tudo que é supérfluo e passado e realçando apenas o mistério que precisa permanecer sempre.

Ficou muito bom, muito bonito. Meus parabéns, você conseguiu captar o melhor de tudo.

I'm Nina, Marie, etc... disse...

Não dá pra ser meio bonito, meio quente, meio-meio. Tem que ser lindo, pelando, inteiro.