EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 4 de setembro de 2022

primavera

Os ares dos primeiros dias de setembro prometem cantos e floresceres no topo das copas. 
Sinais de vida e manhãs ensolaradas e azuis que não apagam, de longe, a gravidade do frio que passou. 

Um longo inverno, 
um longo inferno. 
Pés e mãos enrigecidos da sombra que pairou e perdura; 
lábios rachados de fome, 
saudade ou secura. 
Há um vidrar de olhos no horizonte sem nuvens que aguardamos. 

Álcool, 
Sex Pistols, 
cortinas de fumaça, 
horas perdidas, 
colchão, 
cigarros, 
avenidas. 

Pétalas amassadas na calçada da procissão que ainda não começou. 
Tarde multicor salpicando a acidez do dia mais longo. A língua larga e quente vibrando a pornografia dos quereres aflitos e afetuosos das mentes confusas e brilhantes. 

Alerta vermelho, 
azul, 
sinal verde pra nós. 
Uma porta, duas chaves. 
Um poema-presente.
Nossa primavera.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

chamamento

Andanças, cartas-poemas e amores que antecedem paixões. Pena, tinta e  açucenas na nudez das costas. Dentes, unhas, gritos, mesas. Olhos pequenos e soluços marcando o ritmo do amar sem fim, na cadência bonita do desejo que não cabe em si, não cabe no viver uma vez ou duas, ou no confinamento de dois corpos. São estrelas-canções a dançar pelos desfiladeiros do tempo que não se conta, sedutor com seus tentáculos urticantes e hipnóticos de medusa, na dança infinita de nós dois. Sigo marefeita, com esse calendário lunar que me espuma na beleza de teus beijos, malabares e poemas, na volta das esquinas, sinais, cruzamentos, intermitências, planetas distantes. Encontramo-nos, enfim, no tempo depois do tempo, no chamamento das matas e rios, anos-luz antes do fim.

Dia D, hora H

Atropelamo-nos em frente ao muro dos trilhos, em meio ao caos urbano e calores de 38 graus. All star quicando entre estações no subúrbio. Sol, lua, Vênus no céu de desejos. Um poema, dois livros, maçãs do amor (do rosto) mordidas (trezentas vezes), boca de nuvem, ambrosia. Amassos, fitas, carro de polícia, lava-jato, último ônibus, Baixada à vista. Um bilhete deixado na pele carimbado com a hora não marcada do retorno. Queixo e rosto "felizferidos por barba de amor" ou algo que o valha, profeticamente descrito por Artur da Távola nos idos dos 1970. A doçura pouco discreta da selvageria das paixões intermunicipais, intergalácticas, poéticas e infinitamente sem data de vencimento. Deuses reencarnados. Quem descreverá primeiro o paraíso apocalíptico do tesão? Ruas vazias testemunham o motim de mãos dadas - pernas, pernas, pernas.

O subúrbio agora é inteiro saudade.

Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2022. O dia seguinte. Perdidos estávamos, agora encontrados.)



Contagem regressiva: agora

Contamos agora os segundos e os segredos. Dia D, hora H. Pista livre, plataforma pronta. Escafandrista e astronauta preparam-se para o susto da colisão. Já não é possível respirar dentro dos trajes. O painel mostra a proximidade do objeto em direção à nave. O mar se levanta, ansioso. Temos sol. Sem probabilidade de chuva, ventos de 15 km entre leste e sudeste para amansar calores, suores e explosões do impacto. O povo de Atlantis circula incauto pelos arredores do pouso - mas que mal há nisso? Olhem para o céu, senhores! Mas não sem antes molhar os pés no sal. Deixem queimar os rostos, apertar os olhos, afrouxar os cintos, beijar as bocas, saber o que não se conhecia antes da partida.

Estamos bem. Desembarque em curso. Esperamos do lado de fora.

(Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 2022. Fim da clausura. Encontro. Deleite. Paixão.)





Contagem regressiva: 3, 2...

Apareceu o sol no verão disfarçado de estação lunar. Marte vem se alinhando à Terra para atracar. O sexto oceano ensaia um tsunami mas engole a turbulência e tem de lidar com a azia salgada das marés. Missão em curso. Mapa aberto sobre a mesa: impossível abortar. Sobreviveremos ao caos com as bússolas desalinhadas na mesma direção.

- Tudo na mais perfeita desordem, comandante! - disse o imediato.
Questão de tempo, desde sempre, para o desembarque. Não estamos à deriva.

(Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 2022. Memórias da clausura.)


Contagem regressiva: 4

Tempo e sono são calhordas irrecuperáveis. Ambos estampam o reflexo borrado da castanhura no emaranhado azul. As marcas de café nas bordas das folhas não mentem: são cúmplices do destempero das horas. Cinzeiros vazios e copos cheios - se de esperança, medo ou paixões, não se sabe. São contemplações do tempo que sobra e do sono que falta, numa relação corrupta e desigual. É sempre 3:54 nos varais das madrugadas. Nada soa mais alto que a promessa de felicidade-mór na América Latina, lutas vencidas, dragões depostos, liberdade e amor pra caralho. E não há mentiras a contar, não agora, nunca houve. O mundo é numa cadela no cio - um cio interminável e feroz. E entre um espasmo e outro há pequenices bonitas e blues, que adoçam nossas bocas sujas de bile de outros tempos. A saudade das delícias dos porvires estampam cadernos manchados, na companhia de goles dos cafés batizados com conhaque. Meditação, incenso, prece, música, pressa, relógio, banho, comida, relógio, choro, pressa, relógio, cama, pressa, prece.

O visor marca 9 horas mas é eternamente 3:54 no descabimento das horas.

(Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2022. Memórias da clausura.)







Contagem regressiva: 5

Cá estamos no terceiro ciclo dos quarenta e poucos, apostando na lisura astrológica e confiando na intervenção da flecha certeira, com o alvo estampado na testa - ou no peito? - e contando o tempo, esse canalha. Escafandristas e astronautas apresentam-se nus à missão em terreno desconhecido. Marte e o sexto oceano vibram. O radar não identifica obstáculos e aponta latitude, longitude, hora e minutos para o cumprimento da missão. E há uma colisão em curso com a força atômica não calculada desafiando exatidões. Agora ou mais tarde? Trinta e um ou catorze? Inícios e meios sem fim. Atlantis e seus habitantes esperam por nós. Chiclete de menta e barba cheirando a madeira ralada e beijos. Uma cortina de chuva se interpõe entre a janela e o mundo, entrelaçando quereres. Frio na espinha com o morro verde a ser lambido pela água.

Acorda! Atlantis espera por nós...

(Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 2022. Memórias da clausura.)



Contagem regressiva: 6

O tédio é um bicho que cheira à morte no juízo dos exagerados, nos arroubos vulcânicos, previsíveis e ardidos. O caos pelo lado de dentro da moldura na parede parece estranho e desconfortavelmente cômodo. É como a angústia lenta e infantil que espera as férias nos últimos e massacrantes dias letivos. Um sonhar lamacento, que vai te engolindo feito areia movediça quando se está a dois dedos de alcançar a borda, a margem, a salvação. Ao longe, um cheiro inventado de roupa lavada que secou ao sol, e uma imagem que remete à infância: as bacias das avós com as camisas quarando, anunciando uma brancura que doía nos olhos. E aquele cheiro, aquele cheiro de conforto, de amor, agora sobe e preenche os espaços deixados em branco, mas são novas memórias: memórias do futuro, do imprevisível, das apostas improváveis. O risco. A adrenalina e os suores. Unhas meticulosamente cortadas até a quase dor já não fazem diferença, pois estão sempre em carne viva. Cartas de outrora agora só existem nos lábios-envelopes (vermelhos ou crus), prontas para leitura em voz baixa, sussurrante. Da janela, uma estrada-mar, curvilínea e deliciosa, ora mansa, ora turbulenta feito infernos astrais, sacode o pó do tédio dos dias.

E assim morre mais um. E morre amavelmente, com o breu que chega na mansidão do silêncio negro que me beija as pálpebras. 

(Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 2022. Memórias da clausura. )