EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 28 de junho de 2021

poentes

Nos mistérios poentes da tarde
repousam a paz alaranjada
e os silêncios dos minutos azuis
que repicam a vermelhidão
do sono suave e manso e doce
que toma o lugar do sal do dia
atrasando os ponteiros do tempo.
 
E as ardências causticantes da luz
vão morrendo no colo do mundo
a morte bonita de brisa morna
soprada nos olhos
calmaria que sucede o refluxo
das multidões enfurecidas,
sossego das nuvens corredeiras
moças dançantes no céu.
 
Nos mistérios poentes da tarde
reside a paz das cirandas de infância
de mãos pequeninas e perfeitas
e os cheiros açucarados das avós
com doçuras quentes à mesa.
 
Nos mistérios poentes da tarde
vivem os beijos nos olhos
e a lonjura das maresias
de quem é inteiro saudade.





quinta-feira, 24 de junho de 2021

do infinitivo dos dias

Hoje
espelho
corpo roto 
olhar injetado
dentes podres
babando putaria e ódio
meu demônio zombeteiro
é inteiro escárnio e naufrágio
meus desencontros oceânicos 
a perpetuar meu castigo e me
infernizar no infinitivo dos dias
no espaço sem tempo dos verbos
em cantos encantos sem cor.
Espasmos espumas gritos
carne carne carne
pele bile suicídio
embriaguez
cinzas
dor.


segunda-feira, 21 de junho de 2021

sem título

Nas madrugadas silentes
emerge o eu-monstro:
 da escuridão indizível das fomes
vem o desejo de deitar
com o cão que assombra meu sono
e me revira entranhas 
tornando retintos
os sonhares azuis
pelos segundos musgosos
que me arrastam à morte,
me mastigam as vísceras,
me drenam o sangue.
Nas madrugadas silentes,
portanto,
a carne não é mais branca
mas viva lava
e a sombra maltrapilha
se arrasta pelo porão do caos
a se banquetear com sobras
e se esgueirar no mangue dos dias
até ser noite outra vez.
Nas madrugadas silentes
eu [morta] vivo.