EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 29 de agosto de 2010

Eu sou!


"Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher
Minha mãe e minha filha,
Minha irmã, minha menina
Mas sou minha, só minha e não de quem quiser..."

[1º de julho - Renato Russo]

domingo, 22 de agosto de 2010

Anaïs - parte II - a lavanderia

"Fico tão puta quando esse elevador quebra", gania enquanto descia as escadas do prédio antigo. Segurava de mal jeito o cesto de roupas, enfiando impacientemente as mangas de um casaco que insistiam em ficar penduradas para fora dele. No meio do caminho lembrou que não levava nenhum livro para ler enquanto a roupa lavava. Será que havia revistas na lavanderia? No mínimo seriam aquelas tediosas revistas de conteúdo intelectual abaixo de zero.
O mármore das escadas estava tão encardido quanto as almofadas da sua sala e o corredor fedia a cloro. O andar térreo parecia estar cada vez mais longe e começava a se arrepender de ter calçado as sandálias e resolvido sair. Mas estava muito ruim continuar ali, olhando as garrafas vazias e palavras sem sentido, tentando buscar um resto de alma que fosse em qualquer merda de pensamento inútil.
O porteiro sorriu, levantando-se da modesta cadeirinha de madeira de seu posto e abrindo a porta para que Anaïs saísse. Ele cheirava à bebida e suava como um bicho. Era um belga de quase 2m de altura e rude como um estivador. Dizia sujeiras e sacanagens em flamengo toda vez que ela passava, sem saber que ela havia aprendido um pouco do idioma quando passou uma temporada em Brugge. "Porco", pensou Anaïs. Adoraria vê-lo afogado no próprio vômito - o canalha certamente não voltaria do inferno para espancar a mulher e o menininho de 8 anos.
Ficou um tempo parada à porta do prédio, olhando os carros passarem. Era tudo tão louco e rápido, louco e lento. Era estranho, simplesmente estranho. Era a vida que passava de um jeito que não entendia muito bem, com o tempo batendo à porta a cada arfar, a cada piscar de olhos, a cada gesto involuntário. E era essa estranheza de pairar entre a análise e descrição de tudo ao redor e a tentativa alucinada de mergulhar mais fundo para dentro de si - goela abaixo - que a deixava totalmente aturdida. Esses grandes questionamentos a consumiam. Mas ela não queria respostas. "Fodam-se as respostas. Quem disse que tudo precisa necessariamente fazer sentido?"
Precisava de um cigarro. Precisava desesperadamente de um cigarro. O trânsito estava caótico e aquelas luzes causavam-lhe dor de cabeça. Queria voltar. Ainda dava tempo de voltar à segurança do apartamento e estar de novo na companhia dos fantasmas mudos. Mas havia acabado de descer 6 andares pelas escadas. Não voltaria com as roupas sujas. Iria mesmo à lavanderia e, quem sabe, à delicatessen comprar mortadela. Será que conseguiria comprar mortadela no mesmo lugar em que comprava seu blanquet? "Porra, eu esqueci o cigarro!"
Oito e cinco. Quinze passos - eram necessários quinze passos para alcançar a porta da lavanderia. O cheiro de roupa limpa e amaciante inundou os pulmões mal acostumados de Anaïs. "Vazio. Ótimo." Estava feliz por não precisar conversar com ninguém. Mas precisava comprar seu cigarro. Deixaria as roupas na máquina e atravessaria a rua para comprar seu cigarro.
As paredes branquíssimas e excessivamente cheias de instruções a irritavam enormemente. "Alguém lê essa merda?" Parecia estúpido não lavar as roupas em casa. Aquilo parecia desculpa de gente solitária para ter um pouco de companhia por 40, 45 minutos, talvez... Era patético. Sentia-se patética. Lembrou do macarrão que já estaria gelado quando voltasse. Iria pro lixo. Estava sem camarão. E veio a triste constatação de que não havia revistas na lavanderia. Nem jornais. E a luz ali era tão forte, tão diferente da porcaria de iluminação da sala do seu apartamento... Seria bom ler na claridade.
O mensageiro dos ventos avisou que outro cliente entrava. "Merda", pensou Anaïs, apertando os olhos. Definitivamente não desejava estabelecer qualquer forma de diálogo ou contato aquela noite. Manteve-se de costas para a porta, já longe do balcão da atendente.
- O senhor quer serviço de valete? - perguntou a moça ao outro cliente.
- Não, obrigada. Eu gosto de lavar, você sabe.
"Que idiota", imaginou. "Se gostasse mesmo de lavar, faria isso em casa." Anaïs havia escolhido o último corredor para poder se enrolar o quanto quisesse - e precisasse - sem que alguém a observasse. Ouviu passos naquela direção. Irritou-se. "Será que não se pode lavar uma roupa em paz nesse estabelecimento?" Fingindo não perceber a outra presença, continuou lendo as letras miúdas das instruções e dos trezentos e quarenta e sete botões e opções de lavagem. 
- É a sua primeira vez, não é?
O homem a olhava com um sorriso simpático e irritantemente solícito. Segurava um cesto igual ao seu. 
- Esquece. Você não vai me comer.
Uma risada alta e grave. Um gesto com a cabeça e um sacudir de ombros. 
- Ok. Prometo que não vou cometer nenhum ato antropofágico no meio da lavanderia, mas se você precisar de ajuda com a máquina...
Sentiu-se estúpida. Queria sumir dali.
- Tudo bem. Você fuma?
- Não. E é proibido fumar aqui dentro.
Quis morrer. Ficaria 40 minutos olhando a roupa girar dentro da máquina sem poder ler ou fumar. Esperava com todas as suas forças que o homem fosse lavar sua roupa do outro lado, mas ele parecia pretender ficar por ali. 
Alguns dizem que se pode saber muito sobre uma pessoa pelo seu lixo. Anaïs concordava com isso e, analisando o vizinho de lavanderia, percebeu que talvez as roupas do cesto também dissessem algo a seu respeito. Na falta de uma boa leitura, observaria a roupa do sujeito e tentaria adivinhar sua ocupação.
Camisas sociais. Meias finas. Onde estariam as calças? Certamente não usava jeans para trabalhar, apesar de estar vestindo um naquele momento. Devia usar calças sociais. Executivo? Médico?
O homem terminou de alimentar a máquina e se sentou, pegando um livro do fundo do cesto vazio. Surveiller et Punir, de Foucault. Filósofo? Sociólogo? 
- Psiquiatra forense - disse o homem, sem tirar os olhos do livro.
Anaïs percebeu que não tinha terminado de colocar as roupas dentro da máquina, e que havia se perdido observando as roupas do vizinho. Sentiu-se mais uma vez ridícula. E o ar ali parecia estar parado. Sentiu fome. Ele era atraente. 
Imitando o homem, terminou de colocar as roupas na máquina e se sentou. Permaneceu em silêncio. O barulho de água fazia sentir sede. Ele tinha mãos bonitas e grandes, unhas curtas. Gostava de mãos. 
- Por que achou que queria saber sua ocupação?
- Psiquiatra forense, eu disse. Nenhum detalhe me escapa.
- Psiquiatra forense ou médium?
- Um pouco dos dois, talvez. 
Sorriu. Anaïs se mexeu na cadeira, na tentativa de fazê-lo levantar os olhos do livro. Queria ver a cor dos olhos dele. Mas ele não se moveu. Talvez a estivesse ignorando pelo seu péssimo comportamento de antes. Talvez não estivesse mesmo interessado em conversar. 
Aquela situação era mais constrangedora do que tudo. Estava nervosa. Quis roer as unhas. Arrancar as cutículas. Sentir o cheiro do cigarro no apartamento bagunçado. Tirar a roupa. Transar ali, no chão da lavanderia. Dizer que amava o desconhecido para nunca mais vê-lo. Queria mesmo trocar de pele. Ter um filho. Viajar para Londres. Virar puta.
O relógio havia parado. A máquina também. Era hora de secar. O tempo havia voado. O silêncio entrecortado pelo balançar ritmado das lavadoras era triste. Anaïs quis chorar. Sentiu o nariz arder e os olhos ficarem embaçados de maresia. Um pouco de alma correu silenciosamente pelo canto do rosto. Um lenço branco oferecido pela mão bem feita do homem impediu o curso daquele pequeno pedaço liquefeito de alma de Anaïs.
Permaneceram em silêncio. Não conseguia ver direito a cor dos olhos dele por trás da cortina salinizada que cobria os seus. Havia um tanto de compreensão naquele instante mudo e repleto de sentidos. O homem passou o braço pelos ombros de Anaïs. Em seu colo, o livro permaneceu aberto na primeira parte: Suplício.
A roupa secou. Recolheram-nas e as puseram novamente em seus cestos. Olharam-se, confusos. Não disseram seus nomes. Não perguntaram exatamente nada. Foram cúmplices. Amaram-se platônica e complexamente por aproximadamente trinta minutos, enquanto suas roupas lavavam e secavam. 
Foram embora. Não disseram adeus. Não sabiam se voltariam a se ver novamente. 

(Continua...)


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Anaïs - parte I

"Estão todos mortos", pensou Anaïs. Todos aqueles fantasmas cheios de si e cheirando a naftalina estavam amontoados em um canto sujo do quarto. Acendeu um cigarro e tragou longamente, como se algum mistério da existência pudesse ser desvendado em meio à fumaça em seus pulmões. Olhou ao redor e as garrafas de vinho dos últimos sete dias ainda jaziam pelo chão, espalhadas entre roupas, livros e flores mortas. As anotações picotadas em notas amarelas coladas nas paredes denunciavam a pouca coerência de seus pensamentos.
Caminhou pelo cubículo, chutando as almofadas encardidas e os quatro cinzeiros repletos de pontas de cigarros e cinzas de uns poucos pensares, lendo cada uma das notas das paredes. Com o monte de notinhas imbecis entre os dedos, sentou-se.
"Que merda", resmungou. Um ruga entre os olhos e fumaça lançada longe. Aquela luz nunca funcionava direito e ficava imaginando que deveria ter comprado o abajour lilás da feira de artesanato. Misturou as anotações e tentou montar um quebra-cabeças que não tinha encaixe. Estava puta com a demora da lavanderia, com a multa de trânsito, com a mortadela estragada na geladeira. Mas ela não comia mortadela, não tinha carro, lavava sua própria roupa. Estava enfurecida sem razão, ou talvez por todas as razões que não cabiam em sua vida. Estava faltando alguma coisa e sabia que devia estar anotado entre aqueles malditos papéis amarelos e minúsculos.
Estava sozinha e trancada no apartamento há sete longos dias. Não viu a cara da rua. Não ligou a tv. Não atendeu o telefone. Precisava sentir-se miseravelmente solitária para embarcar numa incursão ao seu próprio calabouço e tentar entender o que havia de errado. Ou talvez não. Talvez precisasse entender que não havia nada de errado, que tudo era uma tremenda babaquice existencial balzaquiana - o que era mais provável. Lembrou novamente dos fantasmas e se virou para o canto onde os havia deixado, aliviando-se ao perceber que ainda estavam ali. "Preciso limpar essa sujeira", resmungou. No fundo, fazia bem saber que estavam ali perto, pois nunca imaginava quando poderia voltar a precisar de algum deles.
Levantou-se e deu de cara com um número anotado na primeira página do caderninho preto. Sorriu. Apagou o cigarro. Imaginou que talvez a sensação fosse de mais um de seus repentes hormonais. Talvez só precisasse ser barbaramente fodida. Quanto tempo fazia? Um, dois meses? Não lembrava ao certo. Sexo era tão absurdamente fácil que Anaïs acabou cansando das trepadas casuais. Era sempre a mesma coisa: bastava fazer aquele jogo casado de olhos e boca que acabaria na cama de algum motel. E isso a irritava profundamente depois do gozo, a ponto de, muitas vezes, não deixar que o amante - quem quer que fosse - a beijasse após o sexo. E sempre dizia que trepava, fodia, transava, mas nunca, nunca dizia que fazia amor.
O interfone toca. Anaïs levanta aos tropeços e xinga por ter que se vestir para atender a porta. Comida chinesa de novo. Sete e meia da noite. Paga a encomenda apressada e deixa o rapaz ficar com o troco. Senta novamente no chão e olha as notinhas. A porcaria da comida está morna, o serviço do restaurante está cada vez mais decadente. "Porra, cadê o camarão?"
Sete e quarenta e cinco. O box de macarrão continua praticamente intacto. Na verdade, não estava realmente com fome. Largou a comida e calçou as sandálias de couro, andando pelo apartamento e juntando as roupas sujas que encontrava em um grande cesto. 
Resolveu mudar a maldita rotina. Precisava ir à lavanderia.

(Continua...)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Acaso

Ao acaso
eflúvios de amor
grudados à pele,
ao nome, ao termo -
término de espaço vazio.
Ao acaso
um tanto de dor
fingindo que fere
mansidão e desterro,
tempestade varando o estio.
Ao acaso
me viro do avesso
paro
olho
demoro
sorrio.