EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 29 de março de 2009

a céu aberto


Eu sou um corpo frágil; e não significa que seja uma matéria com pouco espírito, mas um corpo dotado de um espírito forte, mais forte que o resto.

E esse espírito joga o corpo contra os rochedos às vezes, enquanto os pássaros observam o que restará dos meus pedaços. Mas eu não me entrego. Mesmo o corpo frágil luta contra os próprios pecados, mas o espírito grita e o pune a céu aberto.

A paisagem em preto e branco parece engolir meus pés. Há névoa e apenas alguns pontos de onde posso ver o céu. Quero ver o céu. Mas mãos invisíveis cegam-me - tudo é possível ao sonhador e aos escritores - e o céu passa a refletir dentro de mim, desenhado dentro de minhas pálpebras. E o sol que de repente passa a me aquecer por dentro traz de volta a claridade e a clareza das coisas. O corpo sorri. O espírito acalma. Consigo resgatar a paz na imensidão do céu enclausurado em mim.

Eu me reencontro. A céu aberto - em corpo fechado.


microconto e reflexão

Ele segurou sua mão inesperadamente. E mesmo achando palavras desnecessárias, murmurou baixo - quase inaudível - dentro de sua boca a palavra saudade.
E foi assim - com os olhos pintados e a boca nua - que abaixou-se à sua frente, sentindo vontade de passar os braços ao redor de suas pernas, pedindo-lhe para não partir novamente. Porque toda vez que ele partia, levava consigo uma parte da alma dela, do corpo, do coração. Mas despejava em sua boca o gosto forte do silêncio e da saudade.
"O que nos salva da solidão é a
solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas,
apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o
sentimento de solidão”
Clarice Lispector in A Descoberta do Mundo
É difícil aprender a falar. Levei tanto tempo e de repente percebi o quão desnecessário tornou-se. Por isso aprendi a olhar. Olhar é mais fácil. E alcança um lugar onde as palavras não chegam.

sábado, 21 de março de 2009

save the last dance for me...

- Dança comigo?
- Aqui?
- Agora!
- Assim, na frente de todo mundo?
- Sim, por que não?
- Eu tenho vergonha...
- Vem... Finja que ninguém está olhando...
- Mas só um pouquinho...
- Até a música acabar. Vem aqui...
Ela encostou a cabeça no peito dele, tentando esconder o rosto. Ficaram em silêncio, quase imóveis, juntos, sentindo os pulsos acelerados. Estavam dançando.
- Adoro quando você não se pinta.
- Por quê?
- Porque você é linda.
Um risinho baixo. Uma franzida de testa. O rosto colado no peito dele. Os pés juntos, movendo-se lentamente.
- Casa comigo?
- Ãhn?
- É. Casa comigo?
- Mas nós já falamos sobre isso...
- Eu sei. Casa comigo?
Ela encostou novamente a cabeça no peito dele. A música havia acabado. Mas eles haviam apenas começado a dançar.

terça-feira, 17 de março de 2009

sobre o masoquismo...

masoquismo

ma.so.quis.mosm (Sacher-Masoch, np+ismo) 1 Perversão sexual, em que o indivíduo anormal só satisfaz o desejo erótico quando sofre violências físicas. Há casos de satisfação também nos sofrimentos psíquicos. 2 por ext O que parece procurar sofrimentos físicos ou morais, como autopunição a ato de que seja culpado ou se julgue culpado. Antôn: sadismo.

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Havia pouco que descobrira as delícias que a dor proporcionava ao corpo. O sofrimento que o outro causava fazia acender a pele, o ventre, o espírito. Sentia-se despedaçada e feliz.
Os tapas nas ancas que recebera até então mais pareciam brincadeiras pueris perto do que estava prestes a descobrir. De certa forma estava insatisfeita, inquieta, faminta, como se estivesse sempre faltando parte de alguma coisa. Pensou estar doente. Pensou ser doente. Pensou ser vítima de algum tipo de compulsão sexual intratável que a impulsionasse a buscar parceiros ininterruptamente para tentar saciar um desejo que desconhecia.
Foi numa tarde morna de abril que seu corpo - enfim - despertou. Foi numa dessas ocasiões em que não se sabe exatamente o que esperar. Imaginava estar prestes a repetir o papel de mulher. Mas o que viria seria o início de uma outra vida, de um outro desejo, uma ruptura com tudo que havia experimentado.
Com a pele fresca dirigiu-se a ele, beijando-lhe a boca. Era um beijo terno, que foi se avolumando em sua boca com a língua que crescia e quase fodia os lábios antes pintados de carmim. A barba roçou-lhe o rosto deixando um rastro vermelho por onde passava, misturando-se com o resto de batom que estava agora em todo canto.
Ela se sentou sobre ele ainda vestido, rebolando sobre a maldita calça jeans. O tecido grosso machucava seu sexo de modo que quanto mais doía, mais rebolava. Sentia que ele pulsava a cada movimento seu e suas mãos logo buscaram libertá-lo de tudo o que ainda os separava.
Com as mãos ainda trêmulas, buscou o sexo tenso do amante e o envolveu com os lábios doloridos de beijos. Sentiu as mãos dele quase arrancarem seus cabelos e ouviu daquela boca os nomes mais sujos dos quais jamais fora chamada antes. E a cada xingamento, a cada ofensa, sentia inundar ainda mais o meio das pernas. Sentia-se uma puta.
Logo estava de quatro, oferecendo-se como uma cadela. Mas antes que o sexo fosse preenchido completamente pelo outro, foi invadida por dedos, muitos dedos, com uma força insuportavelmente deliciosa. Os dedos entravam juntos e batiam contra ela quase rasgando aquela carne tão vermelha.
Ela mordia as mãos para suportar a dor, mas não queria que ele parasse. Sentia-se inexplicavelmente amada, querida, suja. Ele a estava punindo por todos os amantes que tivera antes dele, por não ter esperado. E havia um brilho sádico naqueles olhos, um prazer no castigo que aplicava, uma chama que a incendiava ainda mais por dentro. Se ela realmente gostava da dor que sentia, havia encontrado alguém que igualmente gostava de aplicá-la.
Os dedos abandonaram-na e a boca encontrou seu pequeno ponto frágil. Lábios, dentes e língua puseram-se a castigá-la, a mastigá-la. Mas tão logo ela começou a derreter em sua boca, ele parou e fitou o sofrimento em seu rosto, sua entrega. Com as ancas empinadas e abertas, sentiu a carne rasgar com o sexo entrando, e soltou um grunhido como se nunca tivesse sido penetrada antes. E realmente nunca havia sido. Ao menos não daquele jeito.
As duas mãos fortes daquele gigante seguravam seus quadris para que ela não fugisse, para que ela o sentisse inteiramente enterrado em seu corpo, tocando seu útero e proporcionando aquela dor que quase a fazia desmaiar. Era uma dor que arrancava sangue de sua boca, que fazia seus dentes arrancarem pedaços de si mesma, ao mesmo tempo que sentia os dentes do outro em seus ombros, suas costas, em suas nádegas marmóreas. E os hematomas que deixava na parte de trás de seu corpo ardiam a cada tapa que as enormes mãos acertavam enquanto era fodida.
Só soube o que era um orgasmo - um verdadeiro orgasmo - quando este veio acompanhado de dor, de castigo, de verdadeira entrega. Só descobriu seu corpo quando viu o demônio do outro entoar a música que despertava o seu próprio demônio. Era um animal - assumido, descoberto, desperto, faminto. E sua fome somente era saciada quando chorava, à beira de pedir clemência, quando o outro animal jorrava a alma dentro da sua, rosnando, uivando, grunhindo...
Só podia descansar quando o sadismo dele morria dentro do masoquismo dela. Só conseguia fechar os olhos depois que o cão a machucasse e em seguida lambesse suas feridas. E ela, então, aninhava-se nos braços de seu algoz e dormia na paz inabalável do verdadeiro amor.

domingo, 15 de março de 2009

sobre a cafonice...

Por que toda música cafona tem, lá no fundo, bem no fundinho, alguma coisa a ver com a vida da gente?
Músicas românticas, cartas ou declarações de amor, flor no cabelo, conflitos existenciais. Há coisas mais piegas que essas?
Talvez a vida seja mesmo uma grande Ode à Cafonice...

sábado, 14 de março de 2009

feito carne...


Ela acende um cigarro a cada três minutos. Traga como se cada um fosse o último, como se precisasse ingerir toda a fumaça de uma só vez antes de morrer. Mas a morte não vem.

Ela se droga cada vez que o corpo pede, quando transpira e treme. Vende o corpo por alguns trocados na imundície dos cantos escuros pelas madrugadas. Ela sorri à beira do cais - e à beira do caos - tentando imitar as putas aristocráticas, seduzindo qualquer um por qualquer coisa. Um verme oferece um punhado de balas por sua boca. Os olhos brilham com a possibilidade de adoçar a boca que só sabe sentir o amargo do sêmen e o azedo do vômito. Ela se ajoelha sem hesitar.

Ela caminha trôpega pelas vielas contando moedas quando o dia amanhece. Compra um maço de cigarros e um pão que devora com unhas e dentes sujos. Senta à sombra do beco e retoma a rotina do vício até esgotar o último centavo, até o sol baixar e a noite trazer o disfarce perfeito aos indigentes e desgraçados.

Mais uma vez ela sobe ao picadeiro de sua pequena desgraça, oferecendo-se a quem quisesse por qualquer miséria. É uma peça à venda e avariada pelo degeneração e libertinagem.

Enquanto pende na vitrine da escória, apodrece por dentro. Feito carne.


sexta-feira, 13 de março de 2009

perguntas, respostas, mistérios...


De alguma forma, sinto como se tivesse perdido o início do espetáculo.

Talvez tenha sido a minha ausência. Talvez tenha sido a sua.

Toda ausência causa uma espécie de vazio, de dormência. Eu não sei lidar com a dormência. Preciso de uma dose extra de adrenalina, de calor, de cor, de dor. Não a dor melancólica da solidão, mas a dor do exagero: exagero de presença - sim, porque a presença também faz doer -, exagero de contato, exagero de olhos, bocas, mãos.

Mas olho de novo para o palco e os atores parecem tão entretidos com seus papéis que não notam a minha presença - a única presença. Todas as cadeiras ao meu redor estão vazias. Pergunto-me o que estou fazendo ali. Sinto-me constrangida. Busco estupidamente uma resposta dentro de minha bolsa. Mas nem os batons revirados, os papéis perdidos ou as moedas espalhadas podem me responder. Há uma nuvem pesada de mistério acima de minha cabeça. Há um buraco esperando tragar-me abaixo dos pés.

O espetáculo chega ao fim. Os atores recolhem-se ignorando minhas dúvidas. Agora o palco também está vazio.
Mas como todo espetáculo que se preze, resta-me aplaudir de pé o que pude assistir. Sempre há um fim para todas as coisas.
É hora de voltar para casa. Eu, eu mesma e minhas incertezas.

domingo, 8 de março de 2009

sobre a mulher de José...

A mulher de José não é Maria.
A mulher de José arde, chora, é passional, sente ciúme.
A mulher de José gosta de sexo - do sexo com José, do sexo de José.
A mulher de José goza.

A mulher de José peca, geme, queima.
A mulher de José é divina, profana, pura, puta.
A mulher de José carrega a origem do mundo entre as coxas.
A mulher de José é obscena.

A inocência e a indecência residem na mulher de José.
O início de todas as coisas esconde-se no coração da mulher de José.
Ser mulher significa ser a mulher de José.

Eu sou a mulher de José.

sábado, 7 de março de 2009

LÁBIA


Lábia
.
Deus mora em seus pequenos Grandes lábios
O Diabo se esconde em seus pequenos Grandes lábios
A Cura se encontra em seus pequenos Grandes lábios
O Veneno escorre dos seus pequenos Grandes lábios
.
Meu vício se satisfaz com os seus pequenos Grandes lábios
Minha língua abre os seus pequenos Grandes lábios
Minha barba fere os pequenos Grandes lábios
.
Néctar, seiva, chuva, mar, sangue, sal, vinho, água-viva
Beijo molhado, macio, quente, suplicante, provocante, delicioso
.
Que dá a vida, que mata, ferida que fere com prazer
Se Pandora abriu a caixa, eu abro suas pernas
Se Eva provou do fruto proibido
Eu aplico o seu castigo
.
O segredo do sorriso de Monalisa está em seus pequenos Grandes lábios
A razão dos meus esforços são os seus pequenos Grandes lábios
Seu coração fala através dos seus pequenos Grandes lábios
Beijo Afrodite através dos seus pequenos Grandes lábios
E assim cumpro a minha promessa
.
Seja como for, hei de te beijar sempre
.
JOSÉ RODOLFO KLIMEK DEPETRIS MACHADO

domingo, 1 de março de 2009

sobre a verdade

Eu realmente só vejo as coisas do jeito que eu sou. Por isso não acredito nas cores que os outros enxergam. Minha referência é a minha própria paleta. Com ela pinto o mundo como eu quero.

miniuniverso

O vazio das minicertezas me dissolve quando habito meu porão, meu miniuniverso. E, diferente dos outros porões, o meu é claro, limpo, vazio. Não há sujeira ou coisas entulhadas. Há o vazio e eu. Há um silêncio ensurdecedor. E eu me percebo solúvel, invisível, instável.
Há uma fissura no chão. Meus dedos correm ao longo dela, sentindo a falha arranhar a pele. Mas sei que não há outro chão, não há nada abaixo de mim: o som dos passos é oco.
Sinto um calor intenso subir a garganta, crepitando desde o peito. É outra convulsão hormonal. É meu ópio, meu próprio veneno a me queimar por dentro. É a falta de explicação para essa aflição pressionando meu juízo.
Sinto-me absoluta, quase um deus. Sinto que inferno e céu não estão em lugar algum a não ser dentro de mim. A claridade é tão forte que me cega, faz arder os olhos. Preciso de um pouco de escuridão. Porque os deuses também são bipolares - eu preciso de um pouco de tudo.
E quando me deito de ouvido contra o chão frio, ouço apenas as batidas do meu peito rareando; estou me dissolvendo novamente, adormecendo, desaparecendo...