EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 29 de julho de 2021

mondo-carne

Da infinita contenda
entre pânico e doçura
do desenho mal forjado
dos deuses que invento
para justificar pecados
heresias, blasfêmias,
atrocidades do corpo
parido mil vezes do tempo
descarno verdades
espelhos reflexos
pequenos dramas
vistos a olho nu
e corpo mais nu ainda
balbucio a desordem
do mundo avesso
à realidade salgada
dos meus maremotos
e o nojo das mentiras 
sussurradas à meia luz
nos esconderijos sujos
dos impulsos quereres
- diapasão das madrugadas insones -
onde tudo é turvo
e fraudulento,
onde se esconde o homem
e se revela o bicho.
Na acidez impiedosa da pele
resvala o dulcíssimo querer.
Das pragas que me assolam
o mondo-carne
- cão raivoso a babar injúrias -
morro apenas pelas
crudelíssimas lonjuras
que me negam à boca
a saliva e o dulçor.


sábado, 17 de julho de 2021

pelas horas não contadas (ii)

No morno assombro da madrugada
amanhece fronteiriço o tempo
tecido em sutilezas esquecidas
nesse relógio-corpo desencontrado das horas
e afogado nas esquisitices bailantes
na tenacidade dos exageros
e incertezas dos dias.
Entardece displicente a ânsia,
matéria de sentires
no doce inferno
do festival de adoração
(carne, ossos,
sangue e delicadezas).
Tudo é o tempo que foge,
míngua, se espalha pela terra
abaixo dos pés,
urgência desesperada
a assolar corpo e espíritos
- todos eles e o mundo -
onde urge a breve morte
e o mais breve reviver.
Tudo é o viver pelas horas
não contadas,
presente passado a cada instante:
tempo-vivo,
tempo-morto,
tempo meu.

(poema adaptado da prosa de 23 de janeiro de 2010)