EGO

"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."

(Clarice Lispector)

domingo, 9 de outubro de 2011

da dor e outras drogas

O relógio gritava uma hora tarde qualquer. Aquelas horas sempre bem vindas da madrugada tiravam-lhe o sono e o juízo. Era engolida por um desejo suicida ordinário, vontades de gargantas arranhadas e desmesuras passionais que se repetiam a cada instante incontável, a cada piscar de olhos, a cada pensamento intrigado e talhado de verdades. E quando aquela castanhura sorridente dos olhos de Josephine suplicava-lhe descanso, outro precipício se abria no meio daquele mundo de ardências e pequenos desesperos indecentes. E da candura de olhos esverdeados surgia uma criatura diferente, bestificada e avassaladora, de pele posta em brasa e semi-sorriso de caninos à mostra. Josephine, petrificada, sentia doer a curva do corpo, uma vergonha que se dissipava com a dor e cedia espaço ao desespero ruborizado que a violação provocava, rogando em prece ácida e ofegante que a morte não chegasse, que o suplício se estendesse vida afora - mar adentro - para que sentisse de verdade o que era a carne. E o inferno a consumia de dentro para fora, como se ele, o demônio, a devorasse pelo avesso. E se olhava nos espelhos dos olhos profundos de Josephine, lugar de memórias de tempo presente, anunciando a morte quente e violenta que colocaria, enfim, um sorriso cretino naquele rosto vermelho de atrocidades de amor. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

a eterna festa de Beltane

Sempre há um louco em cada esquina. E além dos loucos felizes, há os doentes, os pobres de espírito, os irrecuperáveis. Aqueles que se alimentam de restos, de mínguas, penúria, carência. Mas essas pessoas não fazem diferença ou marcam presença. São coadjuvantes. Ou melhor, estiveram de passagem em algum lugar que não as reconhece como algo importante, mas insistem em espreitar da sombra, de algum lugar triste e eternamente solitário. E não há tristeza maior que a solidão.

Cá estou com minhas memórias desta manhã e de todos os outros dias. Cá estou com as declarações públicas de amor. Com o filho fincado em meu ventre que, antes que esperássemos, voltou para junto de alguma força seminal e resolveu esperar mais um pouco. Cumpriu seu papel em nossas vidas, mesmo que tão brevemente. Cá estou, em ETERNA festa de Beltane, onde celebramos a fertilidade, o amor, a união, nosso verão, primavera, nossas flores fora de estação. Porque somos dois e apenas um nessa imensidão de coisas por vir. Porque nos completamos nessa fé em pequenas coisas. Porque a vida nos sorri todos os dias. Porque sorrimos todos os dias. Porque nosso lugar é no peito do outro, onde mal algum nos alcança, onde a vida se alegra quando há o roçar de peles, de línguas, dessas confissões bonitas que teus olhos esverdeados me fazem em silêncio cada vez que gozamos. Porque não me coloco onde não sou querida. Eu estou. Eu sou. Eu sou parte dessa vida que se ajeita junto com a minha. 
Eu permaneço, Heinz Prellwitz. Em você, pro resto da vida.

domingo, 2 de outubro de 2011

Josephine

Josephine amanheceu com a noite nos olhos - era sempre noite naqueles olhos claros e castanhos borrados de maquiagem. E virava os pares enigmáticos pelas ranhuras que nasciam do chão como raízes, subiam pelas paredes até o teto, como se a tinta gasta de cor crua e encardida tivesse derretido de seu corpo e escorrido pelo lençol, como vida liquefeita, amor alcoólico, semi-deslumbramento. Fundia-se à cama e a todo o resto, como se fosse vento manso, ar, ar, ar. Respirava amoras, sorria insultos. Desintegrava-se. Embriagava-se em suas ebulições míticas. E os montes brancos latejavam na boca da Vida, tensos e cobertos de musgo invisível, pelos, lindos, alimentando a fome bradada naquela garganta. E a miséria lustrosa da escassez de temores cravava suas unhas no colchão de nuvens, deixando apenas os olhos de Josephine vidrados nas horas salpicadas nos girassóis do quarto, repletos de mistério e completamente nus de segredos. Porque Josephine era inteira enigma - mistérios decifráveis, palpáveis, substanciais.