EGO
"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."
(Clarice Lispector)
domingo, 4 de setembro de 2022
primavera
quinta-feira, 23 de junho de 2022
terça-feira, 15 de fevereiro de 2022
chamamento
Dia D, hora H
Atropelamo-nos em frente ao muro dos trilhos, em meio ao caos urbano e calores de 38 graus. All star quicando entre estações no subúrbio. Sol, lua, Vênus no céu de desejos. Um poema, dois livros, maçãs do amor (do rosto) mordidas (trezentas vezes), boca de nuvem, ambrosia. Amassos, fitas, carro de polícia, lava-jato, último ônibus, Baixada à vista. Um bilhete deixado na pele carimbado com a hora não marcada do retorno. Queixo e rosto "felizferidos por barba de amor" ou algo que o valha, profeticamente descrito por Artur da Távola nos idos dos 1970. A doçura pouco discreta da selvageria das paixões intermunicipais, intergalácticas, poéticas e infinitamente sem data de vencimento. Deuses reencarnados. Quem descreverá primeiro o paraíso apocalíptico do tesão? Ruas vazias testemunham o motim de mãos dadas - pernas, pernas, pernas.
Contagem regressiva: agora
Estamos bem. Desembarque em curso. Esperamos do lado de fora.
(Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 2022. Fim da clausura. Encontro. Deleite. Paixão.)
Contagem regressiva: 3, 2...
Apareceu o sol no verão disfarçado de estação lunar. Marte vem se alinhando à Terra para atracar. O sexto oceano ensaia um tsunami mas engole a turbulência e tem de lidar com a azia salgada das marés. Missão em curso. Mapa aberto sobre a mesa: impossível abortar. Sobreviveremos ao caos com as bússolas desalinhadas na mesma direção.
Contagem regressiva: 4
Tempo e sono são calhordas irrecuperáveis. Ambos estampam o reflexo borrado da castanhura no emaranhado azul. As marcas de café nas bordas das folhas não mentem: são cúmplices do destempero das horas. Cinzeiros vazios e copos cheios - se de esperança, medo ou paixões, não se sabe. São contemplações do tempo que sobra e do sono que falta, numa relação corrupta e desigual. É sempre 3:54 nos varais das madrugadas. Nada soa mais alto que a promessa de felicidade-mór na América Latina, lutas vencidas, dragões depostos, liberdade e amor pra caralho. E não há mentiras a contar, não agora, nunca houve. O mundo é numa cadela no cio - um cio interminável e feroz. E entre um espasmo e outro há pequenices bonitas e blues, que adoçam nossas bocas sujas de bile de outros tempos. A saudade das delícias dos porvires estampam cadernos manchados, na companhia de goles dos cafés batizados com conhaque. Meditação, incenso, prece, música, pressa, relógio, banho, comida, relógio, choro, pressa, relógio, cama, pressa, prece.
Contagem regressiva: 5
Cá estamos no terceiro ciclo dos quarenta e poucos, apostando na lisura astrológica e confiando na intervenção da flecha certeira, com o alvo estampado na testa - ou no peito? - e contando o tempo, esse canalha. Escafandristas e astronautas apresentam-se nus à missão em terreno desconhecido. Marte e o sexto oceano vibram. O radar não identifica obstáculos e aponta latitude, longitude, hora e minutos para o cumprimento da missão. E há uma colisão em curso com a força atômica não calculada desafiando exatidões. Agora ou mais tarde? Trinta e um ou catorze? Inícios e meios sem fim. Atlantis e seus habitantes esperam por nós. Chiclete de menta e barba cheirando a madeira ralada e beijos. Uma cortina de chuva se interpõe entre a janela e o mundo, entrelaçando quereres. Frio na espinha com o morro verde a ser lambido pela água.
Contagem regressiva: 6
E assim morre mais um. E morre amavelmente, com o breu que chega na mansidão do silêncio negro que me beija as pálpebras.
(Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 2022. Memórias da clausura. )