EGO
"Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes
que aqui caleidoscopicamente registro."
(Clarice Lispector)
domingo, 6 de setembro de 2020
sábados, domingos e feriados
Funcionamos de segunda a sexta,
das 9 às 18.
]O que importa ser sábado,
domingo ou feriado,
7 de setembro ou Finados?
Estaremos todos mortos ou
talvez já estivéssemos desde o início,
ao aviso de que o fim estaria próximo
- segundo os profetas -
ou à noção de que se morre
em pequenos bocados enquanto se vive.
A pele arde do sal dos olhos
e caminha vertiginosamente ao abate
dentro do cercado
invisível que nos prostra diante do caos,
enquanto bundas ardem felizes
do sal proibido do mar.
Busco um cigarro que não existe
há quase uma década.
Morro agora ou depois?
Da janela espanta-me o que vejo:
há um verão dentro do inverno.
Penso, então, que ainda não é hora.
Falta-me o último desejo.
domingo, 23 de agosto de 2020
gatilhos
Passa das dez. Há um silêncio diferente se desfazendo por dentro da pele, na escuridão das ideias. Uma dor, uma redescoberta em meio à frieza dessa chuva que segue embaçando a janela. Meu demônio insiste em me sussurrar segredos encardidos e vulgares. É sempre noite quando essa sombra me abraça. Com ela vem um regurgitar ansioso e cambaleante de pernas e palavras trêmulas, crepitando nesse inferno particular multissilábico. "Pequena esfinge", lembrei-me. "Devora-me ou te decifro". O frio cede espaço ao rubor-enigma. Pactos-sonhos indissolúveis, livros de cabeceira, quebrantos de poesia nua lida em voz alta. A delicadeza entorpecente das feridas no revés da carne veste de miragem esse vulto feminino. O cansaço não vem das minhas indizíveiss mortes, mas das incontáveis vezes em que não morri. Essa é a minha bússola. Caleidoscopicamente revivo. Sou de novo todos aqueles pássaros.
"Devora-me ou te decifro."
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
do cárcere
Do viver maculado de vícios
resta um punhado de impulsos,
um azedume assombroso e mórbido,
um queimor translúcido
contido nos quatro cantos do claustro
na brancura fria e limpa do desespero-dor
de carne que chama rua, tormenta, multidão;
vibrando um querer obscuro e pulsante
pontilhado de maresia obscena e lamacenta
tal qual o indizível desejo de morte,
resta um punhado de impulsos,
um azedume assombroso e mórbido,
um queimor translúcido
contido nos quatro cantos do claustro
na brancura fria e limpa do desespero-dor
de carne que chama rua, tormenta, multidão;
vibrando um querer obscuro e pulsante
pontilhado de maresia obscena e lamacenta
tal qual o indizível desejo de morte,
do abraço virulento e sem rosto
à espreita num beco sujo
ou na esquina cheia de vivos-mortos,
a encruzilhada espera tictacteando,
sincronizada às batidas do peito,
contando os segundos para o último beijo -
seco, amargo, vazio -
despedida na infinita escuridão.
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