domingo, 23 de agosto de 2020

gatilhos

Passa das dez. Há um silêncio diferente se desfazendo por dentro da pele, na escuridão das ideias. Uma dor, uma redescoberta em meio à frieza dessa chuva que segue embaçando a janela. Meu demônio insiste em me sussurrar segredos encardidos e vulgares. É sempre noite quando essa sombra me abraça. Com ela vem um regurgitar ansioso e cambaleante de pernas e palavras trêmulas, crepitando nesse inferno particular multissilábico. "Pequena esfinge", lembrei-me. "Devora-me ou te decifro". O frio cede espaço ao rubor-enigma. Pactos-sonhos indissolúveis, livros de cabeceira, quebrantos de poesia nua lida em voz alta. A delicadeza entorpecente das feridas no revés da carne veste de miragem esse vulto feminino. O cansaço não vem das minhas indizíveiss mortes, mas das incontáveis vezes em que não morri. Essa é a minha bússola. Caleidoscopicamente revivo. Sou de novo todos aqueles pássaros. "Devora-me ou te decifro."

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

do cárcere

Do viver maculado de vícios
resta um punhado de impulsos,
um azedume assombroso e mórbido,
um queimor translúcido
contido nos quatro cantos do claustro
na brancura fria e limpa do desespero-dor
de carne que chama rua, tormenta, multidão;
vibrando um querer obscuro e pulsante
pontilhado de maresia obscena e lamacenta
tal qual o indizível desejo de morte,
do abraço virulento e sem rosto
à espreita num beco sujo
ou na esquina cheia de vivos-mortos,
a encruzilhada espera tictacteando,
sincronizada às batidas do peito,
contando os segundos para o último beijo -
seco, amargo, vazio -
despedida na infinita escuridão.